Mostrar mensagens com a etiqueta camilo pessanha. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta camilo pessanha. Mostrar todas as mensagens

21 julho 2024

camilo pessanha / branco e vermelho

 



 

 

A dor, forte e imprevista,
Ferindo-me, imprevista,
De branca e de imprevista
Foi um deslumbramento,
Que me endoidou a vista,
Fez-me perder a vista,
Fez-me fugir a vista,
Num doce esvaimento.
 
Como um deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Fez-se em redor de mim.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso...
Que delícia sem fim!
 
Na inundação da luz
Banhando os céus a flux,
No êxtase da luz,
Vejo passar, desfila
(Seus pobres corpos nus
Que a distância reduz,
Amesquinha e reduz
No fundo da pupila)
 
Na areia imensa e plana
Ao longe, a caravana
Sem fim, a caravana
Na linha do horizonte,
Da enorme dor humana,
Da insigne dor humana...
A inútil dor humana!
Marcha, curvada a fronte.
 
Até o chão, curvados,
Exaustos e curvados,
Vão um a um, curvados,
Os seus magros perfis;
Escravos condenados,
No poente recortados,
Em negro recortados,
Magros, mesquinhos, vis.
 
A cada golpe tremem
Os que de medo tremem,
E as pálpebras me tremem
Quando o açoite vibra.
Estala! e apenas gemem,
Pavidamente gemem,
A cada golpe gemem,
Que os desequilibra.
 
Sob o açoite caem,
A cada golpe caem,
Erguem-se logo. Caem,
Soergue-os o terror...
Até que enfim desmaiem,
Por uma vez desmaiem!
Ei-los que enfim se esvaem,
Vencida, enfim, a dor...
 
E ali fiquem serenos,
De costas e serenos…
Beije-os a luz, serenos,
Nas amplas frontes calmas,
Ó céus claros e amenos,
Doces jardins amenos,
Onde se sofre menos,
Onde dormem as almas!
 
A dor, deserto imenso,
Branco deserto imenso,
Resplandecente e imenso,
Foi um deslumbramento.
Todo o meu ser suspenso,
Não sinto já, não penso,
Pairo na luz, suspenso
Num doce esvaimento.
 
Ó Morte, vem depressa,
Acorda, vem depressa,
Acode-me depressa,
Vem-me enxugar o suor,
Que o estertor começa.
É cumprir a promessa.
Já o sonho começa...
Tudo vermelho em flor...
 
               Clepsidra (1920)
 
 
 
camilo pessanha
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa
organizada por herberto helder
assírio & alvim
1985




10 junho 2022

camilo pessanha / san gabriel






 
I
Inútil! Calmaria. Já colheram
As velas. As bandeiras sossegaram,
Que tão altas nos topes tremularam,
– Gaivotas que a voar desfaleceram.
 
Pararam de remar! Emudeceram!
(Velhos ritmos que as ondas embalaram).
Que cilada que os ventos me armaram!
A que foi que tão longe nos trouxeram?
 
San Gabriel, arcanjo tutelar,
Vem outra vez abençoar o mar,
Vem-nos guiar sobre a planície azul.
 
Vem-nos levar à conquista final
Da luz, do Bem, doce clarão irreal.
Olhai! Parece o Cruzeiro do Sul!
 
 
II
Vem conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir-se-ia
Irmos arando em um montão de estrelas.
 
Outra vez vamos! Côncavas as velas,
Cuja brancura, rútila de dia,
O luar dulcifica. Feeria
Do luar não mais deixes de envolve-las!
 
Vem guiar-nos, Arcanjo, à nebulosa
Que do além vapora, luminosa,
E à noite lactescendo, onde, quietas,
 
Fulgem as velhas almas namoradas…
– Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.
 
 
 
camilo pessanha
clepsidra
1920



 

14 junho 2020

camilo pessanha / soneto de gelo



Ingénuo sonhador – as crenças d´oiro
Não as vás derruir, deixa o destino
Levar-te no teu berço de bambino,
Porque podes perder esse tesoiro.

Tens na crença um farol. Nem o procuras,
Mas bem o vês luzir sobre o infinito!...
E o homem que pensou, - foi um precito,
Buscando a luz em vão – sempre às escuras.

Eu mesmo quero a fé, e não a tenho…
– Um resto de batel – quisera um lenho,
Para não afundir na treva imensa,

O Deus, o mesmo Deus que te fez crente…
Nem saibas que esse Deus omnipotente
Foi quem arrebatou a minha crença.


camilo pessanha
clepsidra
1920







23 junho 2019

camilo pessanha / singra o navio



Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
— Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara.
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
— Ó fulgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...


camilo pessanha
clepsidra
1920







07 abril 2019

camilo pessanha / ao longe os barcos de flores



Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...


camilo pessanha
clepsidra
1920






08 abril 2018

camilo pessanha / ó cores virtuais que jazeis subterrâneas




Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas,
– Fulgurações azuis, vermelhos de hemoptise,
Represados clarões, cromáticas vesânias – ,
No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

As pálpebras cerrai, ansiosas não veleis.

Abortos que pendeis as frontes cor de cidra,
Tão graves de cismar, nos bocais dos museus,
E escutando o correr da água na clepsidra,
Vagamente sorris, resignados e ateus,

Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.

Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,

Adormecei. Não suspireis. Não respireis.


camilo pessanha
clepsidra
1920





26 março 2017

camilo pessanha / quem poluiu...



Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer - meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear - tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
- Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Nem te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.


camilo pessanha






11 dezembro 2016

camilo pessanha / canção da partida




Ao meu coração um peso de ferro
Eu hei-de prender na volta do mar.
Ao meu coração um peso de ferro...
                Lançá-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,
as penas do amor não queira levar...
Marujos, erguei o cofre pesado,
                Lançai-o ao mar.

E heide mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre selado.
A sete chaves: tem dentro uma carta...
- A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves - a carta encantada!
E um lenço bordado... Esse hei-de o levar,
Que é para molhar na água salgada
No dia em que enfim deixar de chorar.



camilo pessanha
clepsidra






14 dezembro 2015

camilo pessanha / interrogação



Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

  
camilo pessanha
clepsidra




08 julho 2015

camilo pessanha / floriram por engano as rosas bravas






Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze — quanta flor! —, do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?




camilo pessanha




15 dezembro 2013

camilo pessanha / soneto



Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
Estranha sombra em movimentos vãos.



camilo pessanha
clepsidra




10 abril 2013

camilo pessanha / paisagens de inverno




Ó meu coração, torna para trás.
Onde vais a correr, desatinado?
Meus olhos incendiados que o pecado
Queimou - o sol! Volvei, noites de paz.

Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
Ó meus olhos, cismai como os velhinhos.

Extintas primaveras evocai-as:
Já vai florir o pomar das macieiras.
Hemos de enfeitar os chapéus de maias. -

Sossegai, esfriai, olhos febris.
E hemos de ir cantar nas derradeiras
Ladainhas... Doces vozes senis...



camilo pessanha
clepsidra




26 maio 2012

camilo pessanha / água morrente


  


Meus olhos apagados,
Vede a água cair.
Das beiras dos telhados,
Cair, sempre cair.

Das beiras dos telhados,
Cair, quase morrer...
Meus olhos apagados,
E cansados de ver.

Meus olhos, afogai-vos
Na vã tristeza ambiente.
Caí e derramai-vos
Como a água morrente.



camilo pessanha
clepsidra