24 março 2009

luís miguel nava / os olhos






Sempre que sobre mim poisava os olhos, o olhar dele era o de quem os volta para dentro de si próprio, como se nesse espaço me quisesse aprisionar ou dele, sem que eu sequer o suspeitasse, há muito me tivesse feito residente. Raro era, porém, surgirem sob as pálpebras, no rosto, onde seria de esperar vermo-los, esses olhos. Não o faziam senão quando, como depois veio a ser sabido, até aí com ímpeto os alçava o seu mar interior nas suas cristas.






luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002




22 março 2009

gil t. sousa / tudo se pode esconder nos olhos...

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3/

tudo se pode esconder nos olhos mais nus. esta descoberta transforma-te e transforma o mundo em que te moves.







gil t. sousa
falso lugar
2004
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20 março 2009

hans-ulrich treichel / esforço







O suor corre
em bica como se eu
cortasse troncos de árvore
e afinal eu só escrevo
um pequeno poema
muito frio







hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994




19 março 2009

leopoldo maria panero / conversação




Morrerei em Paris com aguaceiro
são testemunhas os meus ossos umerais
e as minhas omoplatas
” César Vallejo








Caíam e caíam a meus pés generais
e ricos e plebeus
que não quiseram arriscar-se à vida
e todos choravam pela boneca triste
e voltava todos os dias a chorar tremendo
a minha casa
filho do medo, a chorar
pela minha boneca triste.







leopoldo maria panero
conversação
tradução pedro serra
livros cotovia
2001





18 março 2009

gil t. sousa / não há grandes poetas

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2/

não há grandes poetas nem grandes poemas; há palavras que nos agarram no momento certo. só isso.








gil t. sousa
falso lugar
2004






16 março 2009

andre breton e paul éluard / tentativa de simulação da paralisia geral





Minha grande adorada bela como tudo na terra e nas mais belas estrelas da terra que eu adoro minha grande mulher adorada por todos os poderes das estrelas bela com a beleza dos biliões de rainhas que adornam a terra a adoração que tenho pela tua beleza põe-me de joelhos para te suplicar que penses cm mim ponho-me aos teus joelhos adoro a tua beleza pensa em mim tu minha beleza adorável minha grande beleza que adoro faço rolar os diamantes no musgo mais alto que as florestas de que os teus cabelos mais altos pensam em mim — não me esqueças minha mulherzinha nos meus joelhos na altura ao canto da. lareira sobre a areia em esmeralda — olho para ti na minha mão que me serve para me firmar em tudo no mundo para que tu me reconheças por aquilo que sou minha mulher morena-loura minha bela e minha tola pensa em mim nos paraísos com a cabeça nas minhas mãos.
Eu não estava cansado dos cento e cinquenta castelos onde nos íamos amar irão construir-me amanhã outros cem mil cacei das florestas de baobás de teus olhos os pavões as panteras e as aves-liras eu os encerrarei nos meus castelos fortes e iremos passear ambos nas florestas da Ásia da Europa da África da América que rodeiam os nossos castelos nas florestas admiráveis dos teus olhos que estão habituados ao meu esplendor.
Não tens de esperar pela surpresa que te quero fazer pelo teu aniversário que é hoje no mesmo dia que o meu — vou fazer-ta imediatamente pois esperei quinze vezes o ano mil antes de te fazer surpresa de te pedir para pensares em mim às escondidas — quero que penses em mim rindo minha jovem mulher eterna. Contei antes de adormecer nuvens e nuvens de carros cheios de beterrabas para o sol e quero levar-te à noite à praia de astracã que estão prestes a construir com dois horizontes para os teus olhos de petróleo para fazer a guerra eu te levarei por caminhos de diamantes pavimentados de primaveras de esmeraldas e o manto de arminho com que quero cobrir-te é urna ave de rapina os diamantes que teus pés pisarão mandei-os lapidar em forma de borboleta. Pensa em mim que não sonho senão com o teu clarão onde adormece o luxo alegre de uma terra e de todos os astros que conquistei para ti adoro-te e adoro os teus olhos e abri os teus olhos abertos a todos aqueles que viram e darei a todos os seres que os teus olhos viram vestidos de ouro e de cristal vestidos que deverão tirar quando os teus olhos os tiverem embaciado com o seu desprezo. Sangro no meu coração apenas com as iniciais do teu nome num estandarte com iniciais do teu nome que são todas as letras de que o z é a primeira no infinito dos alfabetos e das civilizações onde te amarei ainda pois queres ser minha mulher e pensar em mim nos países onde já não existe termo médio. O meu coração sangra na tua boca e volta a fechar-se na tua boca em todos os castanheiros-rosas da avenida da tua boca onde vamos na poeira deslumbrante deitarmo-nos entre os meteoros da tua beleza que eu adoro minha grande criatura tão bela que eu estou feliz por embelezar os meus tesouros com a tua presença teu pensamento e teu nome que multiplica as facetas do êxtase dos meus tesouros com o teu nome que eu adoro porque encontra um eco em todos os espelhos de beleza do meu esplendor minha mulher original meu andaime de pau-rosa tu és a minha culpa da minha culpa da minha muito grande culpa como Jesus Cristo é a mulher da minha cruz — doze vezes doze mil cento e quarenta e nove vezes te amei com paixão no caminho e estou crucificado ao norte a este a oeste e ao norte pelo teu beijo de rádio e quero-te e és no meu espelho de pérolas o hálito do homem que não te trará à superfície e que te ama na adoração minha mulher deitada de pé quando estás sentada a pentear-te.
Tu virás tu pensas em mim tu virás tu correrás nas tuas treze pernas cheias e em todas as tuas pernas vazias que batem o ar com o baloiçar dos teus braços urna multidão de braços que querem enlaçar-me a mim de joelhos entre as tuas pernas e os teus braços para te enlaçar sem receio de que as minhas locomotivas te impeçam de vir até mim e sigo-te e estou diante de ti para te deter para te dar todas as estrelas do céu num beijo nos olhos todos os beijos do mundo numa estrela sobre a boca.



Bem teu em archote.




P. S. — Queria um botim para a missa com uma corda de nós para marcar as páginas. Traz-me também um estandarte franco-alemão para eu colocar no terreno vago. E uma libra de chocolate Menier com a menina que cola anúncios (já não me lembro). E depois mais nove dessas meninas com os seus advogados e os seus juízes e tu vem no comboio especial com a velocidade da luz e os bandidos do Far-West que me distrairão um minuto que aqui salta infelizmente como as rolhas de champanhe. E um patim. O meu suspensório esquerdo acaba de se partir eu levantava o mundo como uma pena. Podes fazer-me um favor compra um tank quero ver-te chegar como as fadas.








andre breton e paul éluard
as possessões
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972




09 março 2009

vergílio ferreira / há um limite para se ser profundo






124 - Há um limite para se ser profundo. Há um limite para se ser subtil. Há um limite para se ser bom observador. Nós temos de nos mover num mundo de limites para a viabilidade de se ser. O limite da profundeza é a escuridão. O da observação é o do microscópio electrónico. Mas tudo no homem é assim. Para lá de certos limites é a confusão, a gratuidade, a loucura. Assim o grande amor se reconhece na morte ou o excesso da razão na confusão ou sofisma ou absurdo ou impensável ou gratuito. Todo o excessivo no homem é desumano ou degenerescência ou vazio. Mas que há de grande no homem senão o excesso de si? E é decerto aí que mora Deus. Ou mais para lá.








vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001





02 março 2009

josé tolentino mendonça / me and my brother








Percorria os lugares daquela fotografia
a muralha de silvas, a quinta reencontrada
os finais de ano
e aquilo que depois não está
onde antes existiu

Tinha esquecido para que serve
a infância
não é uma terra protectora
ao contrário do que dizem
com os seus céus que vemos cair
os fragmentos selvagens
em que mais tarde pensamos
vezes sem conta
o pudor já então reconhecível
que nos faz trair a vida
um pouco como tudo isto










josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006