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09 setembro 2024

vergílio ferreira / de vez em quando

 
 
 
338 – De vez em quando descobre-se uma criação extraordinária nas artes e nas letras. Ou redescobre-se, que é o mesmo. Mas quantas obras ficaram desconhecidas para sempre. Quantos não escreveram obras-primas que ninguém leu ou se perderam. Ou as imaginaram mas nunca as realizaram para existirem. Ou morreram cedo, antes de as imaginarem. Há monumentos ao «soldado desconhecido». Mas fazer guerra não é o acto sublime do homem. Penso neles agora, e eles existem ao menos no meu pensamento. E aqui lhes ergo, na minha compaixão, o monumento que nunca ninguém se lembrou de lhes erguer.
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004





04 dezembro 2023

vergílio ferreira / a morte dos amigos

 
 
284 – A morte dos amigos e conhecidos traz uma pergunta enigmática que nos desconstrói a imortalidade. Escrevo-a na lousa escolar em letras tortas de hesitação – para quê? Apago as letras com a esponja, fica o escuro da pedra. Para quê? É a pergunta da infância e da velhice. Apago a pergunta na memória e fica a lisura de simplesmente existir. E a imortalidade volta como a ternura triste de um cão.
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001





24 setembro 2023

vergílio ferreira / não tenhas pena de ser mortal

 




 

155 – Não tenhas pena de ser mortal e de não conheceres a eternidade. Porque a eternidade está em ti, no momento incrível de te desprenderes do teu corpo, da sua miséria e estrume, e te pensares a ti mesmo e te sentires ser. Ou quando uma imagem de outrora, luminosa, ténue, se abre ao teu imaginar. Ou quando, fulminante, uma obra de arte. Ou quando, violento intenso instantâneo, o todo de uma mulher. Ou quando pela manhã a terra espera em silêncio que o dia vá começar. Ou quando. A eternidade mora em nós e na vida, deixa apenas que ela se diga e te habite. E serás mais do que Deus, cuja eternidade passou.
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004




20 janeiro 2023

vergílio ferreira / o nada é impensável

 



326 – Não o perguntes. Basta pensar no que se perdeu não de há muito tempo até hoje. Ídolos das artes e letras, do futebol, da política, do que parecia bem ou mal. Tens razão, agora é diferente. Porque o que se sente no vento, o que se percebe na voz inaudível de um incerto aviso de morte não tem que ver com o mais e o menos, o que sobra do que se eliminou, mas com tudo o que se imaginou de toda a ordem da vida. Um homem novo está a nascer e não traz sinais do nosso sangue, do modo de se ser humano como limite de tudo o que se precisa imaginar. Será possível conceber-se um ser humano que nada tenha a ver com o ser-se homem? Um homem que se reconheça numa ordem de ser pensante e sensível? Hoje já não precisa de saber a tabuada para fazer contas, de saber ler e escrever para existir o livro e a carta, de haver amor ou simples atracção para produzir humanidade, de quaisquer regras para a consciência existir, se saber o que é isso de consciência para haver culpa ou remorso. O que se segue é ininteligível para um modo de haver entendimento das coisas. O que se segue começa no nada e o nada é impensável. Pois. Mas não te faças perguntas sobre um nada a começar. E acaba tu nos limites do que te foi pensar e sentir o justo e o injusto e tudo o mais que te ordenou o seres vivente na ordenação de tudo o que te coube. Porque amanhã nada te existe e o mundo terá portanto acabado. Não te canses a perguntar. E sê inteiro para quando a morte chegar cumprir o seu dever e tu o teu para não chegar em vão.
 
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




10 setembro 2022

vergílio ferreira / a memória

 
 
172 – A memória. Ela é quase sempre uma recuperação de imagens imóveis. Porque relembrar o movimento exige um esforço de deliberação. E a memória simplesmente aparece. Mas são imagens que se marcam ou douram de um envolvimento que as transfigura. Um halo, uma ténue neblina. E tudo isso inserido numa certa estação do ano, num certo momento do dia ou da noite. São imagens que se repetem na evocação de certos lugares como se os condensassem e nelas se resumisse ou aglomerasse a vida toda aí vivida. Uma hora de neve, de um gelo na face ao caminhar por uma rua com os beirais das casas pingando a água do degelo. Uma certa hora de Outono com esguios castanheiros a desfolharem-se. Uma certa noite de Varão com uma grande lua a nascer. Um passeio pelo campo com flores silvestres que talvez ninguém mais veja. Memória de uma vida tão cheia do seu nada nesse breve instante que a resume toda. O melhor de si. Esse nada de si.



vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




03 abril 2022

vergílio ferreira / ir ver o mar

 
 
179 – Ir ver o mar. Vê-lo de vez em quando e sempre com a mesma fascinação. Que é que vem dele para assim nos fascinar? A sua força imensa diante da nossa pequenez. O seu mistério visível e inquietante porque é o invisível da sua visibilidade. O irrisório da sua absurda convulsão e o aceno indistinto que vem de trás do horizonte e não sabemos o que é. O aroma a espaço, uma memória confusa de aventura, o sinal presente da sua infinitude ausente, a dilatação de nós a um poder imenso, um certo conluio com Deus.
 
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004




06 março 2021

vergílio ferreira / inventar a alegria

 
 
267 – Inventar a alegria. Ou estar atento à sua revelação. Mas é preciso merecê-la e não estarmos tão sujos. Esquecer um pouco talvez o ódio a fome a morte. Guerras de carnificina odienta, imensa fome dos sub-humanos da humanidade. Inventar a alegria por sobre tudo isso ou estar limpo de todas as fezes da alma para que ela apareça. Porque há pássaros ainda a explica-la e há a luz. E há o que simplesmente existe e é miraculoso no seu ser. Que a paz te inunde e te lave e tu ressurjas na pureza de um mundo que vai começar…
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




05 janeiro 2021

vergílio ferreira / o ponto mais alto

 
 
 
158 – O ponto mais alto a que se pode ascender para daí olhar o mundo e a vida é a sabedoria que Sócrates recomendava e dizia não se poder definir ou explicar. Mas nada é explicável quando investido da sensibilidade humana, ou seja do mistério que é o próprio homem. Amor, alegria, riso e o mais, com a massa enorme de reflexão quem é que jamais os explicou? A sabedoria é incerta porque a dúvida prévia em que se dilui o seu saber, adia-lhe para sempre a definitividade do que é. Não é o «só sei que nada sei» porque aí não há saber algum. É o saber que o seu limite está no sem fim. E para essa viagem interminável ter um coração sossegado e um sorriso a acompanhar-lhe o sossego.
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001

 



23 setembro 2020

vergílio ferreira / jovens e nus frente ao mar

 

229 – Jovens e nus frente ao mar, estão presentes em cada célula do seu corpo. Mas a vida que têm é demais para eles e não sabem que fazer dela. Emergem da água rutilantes e riem. Depois deitam-se na areia, gastam o dia e a noite a amar-se, a embebedar-se, a estoirar todo o prazer e forças que têm. E ficam ainda com vida por gastar. É desses sobejos já com bolor que terão de viver depois na velhice.

 

 

vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001

 

 


29 abril 2020

vergílio ferreira / não é nada, é um novo dia que começa



259 – Não é nada, é um novo dia que começa. O sol ergueu-se pela ésima, ésima vez. Há luz no ar. Os pinheiros inundam-se dela, acenam na aragem a uma voz que vem de longe. Um cão ladra excitado à alegria da vida, há sinais longínquos do trabalho dos homens. Reconheço-me eu vivo também e recolho em mim o universo inteiro. Tudo se recompõe na vida que se suspendeu, as flores voltam a ter razão de ser à luz. E há por cima de tudo um céu azul. Não é nada. É um novo dia que começa.



vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004











01 setembro 2018

vergílio ferreira / canta-me uma miséria de penas sem razão




Melo, 31 de Agosto de 1948


Canta-me uma miséria de penas sem razão
Com branda névoa de criança brincando na lama
e sois doentes morrendo.
Que a minha presença para mim seja este sonho magoado
sem corpo, sem desejo de que não seja magoado.
Que os meus olhos sejam a folha que o vento fez ave por
                                                                       segundos,
que o coração seja apenas o órgão mercenário para isto
                                                                             tudo,
e um momento estarei de acordo.



vergílio ferreira
diário inédito 1944-1949
bertrand editora
2008






28 outubro 2017

vergílio ferreira / sim, amo-te, verdadeiramente



Évora, 15 de Outubro de 1948


Sim, amo-te, verdadeiramente,
Com essa possibilidade de estar todo inteiro no amor
Quando for caso disso.
Mas esqueces nas tuas dúvidas
Que a perfeição de uma ideia
Do ódio ou amor que se tem
É quase sempre a certeza que tudo em roda está bem.


vergílio ferreira
diário inédito 1944-1949
bertrand editora
2008










13 setembro 2016

vergílio ferreira / já há oito séculos



Já há oito séculos, meu povo, escreves
A história para os outros.
É tempo agora de escreveres a tua



vergílio ferreira
diário inédito 1944-1949
bertrand editora
2008



28 novembro 2015

vergílio ferreira / quase toda a gente gosta de saber o seu futuro


226 – Quase toda a gente gosta de saber o seu futuro e paga para isso a astrólogos ou às bruxas. Mas só na ideia de que esse futuro seja bom. E é o que eles lhes dizem para não fecharem a porta. Mas o negócio continuaria, ainda que te dissessem que morrerias no dia seguinte. Porque a morte é a única certeza em que não se acredita. Se fores condenado à forca e tiveres já a corda ao pescoço, o minuto que faltava seria ainda de vida, ou seja de eternidade.


vergílio ferreira
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edição de helder godinho
bertrand editora
2001



01 novembro 2015

vergílio ferreira / na idade média a literatura popular…



118 – Na Idade Média a literatura popular era a erudita, se calhar porque em cultura tudo era povo. Depois a arte soube de si que existia e passou a haver divisão de classes. Hoje refinou-se até quase se sumir. Foi quando no cansaço da subtileza se olhou a arte popular com simpatia. E a das crianças. E a dos loucos. Mas a própria arte erudita pôde distanciar-se da que o era de menos e criou e marcou as suas distâncias. Na literatura culta há assim a de consumo intelectual e a que é em fornada para a grande massa, menos ginasticada do espírito. É a literatura directa, aplainada, tratada a mão grossa nos temas e processos para os circuitos da sociedade de consumo. Qual delas tem significação? Mas era preciso saber qual a significação do nosso tempo. Ou a significação de ter significação. Não a sabemos.



vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004



21 julho 2015

vergílio ferreira / que é que muda em nós quando mudamos?



99 – Que é que se muda em nós quando mudamos? De idade, de uma condição, às vezes mesmo de um local? Podem manter-se os mesmos valores, ideologia, relação com a vida. e todavia, aí mesmo, alguma coisa pode mudar. É a mudança que se opera no indizível de nós, onde mora a organização disso tudo, ou seja, o equilíbrio disso tudo. Os valores reordenam-se numa outra ordenação, num outro escalonamento, num modo diverso de os perspectivarmos. Os valores podem permanecer, mas não na face que era a sua ou o lugar que era o seu. E com isso em nós a porção de alma que lhes démos. Ou a aceleração do ritmo da nossa excitação. Não se entenderá assim que a mesma obra seja diferente como a arrumação diferente dos móveis de uma sala? Porque uma obra é o que é, mais o modo de a fazermos ser o que nela somos nós. Mas esse modo é o que ela é afinal. Que é que muda em nós quando mudamos? Uma forma diferente de sermos o mesmo. As vagas do mar. Um céu que se descobre. A pele que se enruga. O ângulo do olhar.

  

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bertrand editora
2004




06 abril 2012

vergílio ferreira / recolhimento





4 - O abandono. O vazio. A indiferença. Tudo está feito, o que tinhas a dizer já o disseste, os que dialogavam contigo para estarem de acordo ou te insultarem foram recolhendo ao silêncio definitivo. É a hora de te ires calando também, recolheres à aposentação de falares e de ouvires. Porque nenhuma palavra é já para ti e assim nenhuma tua é para os outros. Mas a tua língua move-se ainda, entre ela e a palavra, mesmo que seja só um nome, há uma ligação que nada pode cortar. Fala para dentro. Chama para dentro. E poderás circular entre os homens sem que te metam num manicómio.






vergílio ferreira
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edição de helder godinho
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2001



30 maio 2010

vergílio ferreira / pensar o livro





132 Pensar o livro. Pensá-lo antes de mais como objecto na simples volúpia de o ter na mão. Na beleza do seu esquadriado, da sua apresentação, do volume, da gramagem. Na tessitura e tom das suas folhas, na possível cartonagem ou encadernação, no halo de mistério que o envolve. Perdeu-se o deleite de o desflorar, agora com as folhas cortadas a cutelo. O prazer de lhe revelar o oculto de si, agora que tudo é público e envidraçado e exposto na rua. Pensar o livro na sua intimidade connosco sem mais ninguém a assistir. Pensá-lo no silêncio de quatro paredes, no que só a nós nos diz. A leitura colectiva de outrora tinha também decerto o seu mistério mas que era outro. Como a comunidade de uma catedral ou a de um cinema. Há outras formas de se estar em comum como o comício político ou o jogo de futebol. Mas é esta uma comunidade exteriorizada, virada do avesso, em que se está com os outros justamente pelo lado animal. O uso do vídeo laicizou essa espécie de sagrado de uma sala de cinema. Mas é por isso que ao que dizem se está a voltar a essas salas. Nunca reparaste no estranho incómodo de ires ao cinema, quando ias, e haver pouca gente a assistir? O sagrado então degrada-se pela ausência de uma comunidade. Numa catedral deserta não o perdes porque está lá na luz dos vitrais, no eco dos teus passos ou de um rumor ausente pela cúpula das abóbadas. Mas no cinema vazio todo o mistério se desvanece na materialidade as cadeiras, das galerias. A imprensa, como o vídeo, pretendeu destruir a imposição da comunidade para afirmação do indivíduo. Mas se o vídeo destruiu tudo e deixou para si apenas a comodidade do sofá e de não sair à rua, o livro solitário fala-nos mais intensamente no secreto de nós. A cristandade numa catedral vive ou vivia o sagrado da oração numa presença totalizada de Deus. A relação a sós com a divindade que o protestantismo trouxe dissipou o que a transcendia na amplitude do sagrado. Algo se terá perdido da leitura colectiva na leitura individual? Mas é possível que a leitura em comum recolhesse da catedral a sacralização de se estar junto. Mas hoje a catedral já perdeu também esse sagrado. Está-se demasiado na rua para lá dentro se não estar. E é possível por isso que o sagrado se tenha transferido para a simples obra de arte, sobretudo para o seu santuário que é o museu. E é esse sagrado individualizado que talvez sintas no livro. Na sua revelação. Num certo receio de lhe desvendar o mistério. De te sentires um pouco violentado por ele ao ponto de o quereres, sem quereres, destruir, abrindo-o rasamente, aplanando-lhe as folhas que se encurvam, instrumentalizando-o com notas à margem e sublinhados, dobrando as folhas para 1he marcar o sítio em que o lês quando suspendes a leitura e o mais. Mas o mistério é mais forte e volta se o leres na intimidade de ti. E o destróis ou suspendes se o lês simplesmente numa praia ou num carro eléctrico. Mas então o que te interessa não é o seu mistério, mas simplesmente o que diz. Em todo o caso é mais viável para isso ler um simples policial ou um livro de anedotas.
Pensar o livro. E amá-lo desde a sua materialidade ao mistério da criação a que nele poderás assistir…








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09 março 2009

vergílio ferreira / há um limite para se ser profundo






124 - Há um limite para se ser profundo. Há um limite para se ser subtil. Há um limite para se ser bom observador. Nós temos de nos mover num mundo de limites para a viabilidade de se ser. O limite da profundeza é a escuridão. O da observação é o do microscópio electrónico. Mas tudo no homem é assim. Para lá de certos limites é a confusão, a gratuidade, a loucura. Assim o grande amor se reconhece na morte ou o excesso da razão na confusão ou sofisma ou absurdo ou impensável ou gratuito. Todo o excessivo no homem é desumano ou degenerescência ou vazio. Mas que há de grande no homem senão o excesso de si? E é decerto aí que mora Deus. Ou mais para lá.








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27 outubro 2007

pensar a Europa




91 Pensar a Europa. Pensar o esgotamento de todos os seus possíveis e a sua paralisia. Como um tísico e o seu olhar febril e cheio ainda de iluminação. O cerco aperta-se de todas as civilizações, das que sobretudo sentem em si um pólo unificador. Imaginá-la inundada do islamismo ou tingida de preto de uma inundação africana ou asiática. Imaginá-la surpreendida no entretém do seu vazio. Pensá-la servil como os escravos pedagogos em Roma, a servir de ilustração aos seus novos senhores. Ou pensá-la coalhada de electrodomésticos e computadores, na ausência de uma alma enfrentada aos bárbaros da tecnologia. Pensá-la dessorada, fluidificada, viscosa na indiferenciação total do seu ser. Pensar a Europa. Chorar sobre ela.




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