132 Pensar o livro. Pensá-lo antes de mais como objecto na simples volúpia de o ter na mão. Na beleza do seu esquadriado, da sua apresentação, do volume, da gramagem. Na tessitura e tom das suas folhas, na possível cartonagem ou encadernação, no halo de mistério que o envolve. Perdeu-se o deleite de o desflorar, agora com as folhas cortadas a cutelo. O prazer de lhe revelar o oculto de si, agora que tudo é público e envidraçado e exposto na rua. Pensar o livro na sua intimidade connosco sem mais ninguém a assistir. Pensá-lo no silêncio de quatro paredes, no que só a nós nos diz. A leitura colectiva de outrora tinha também decerto o seu mistério mas que era outro. Como a comunidade de uma catedral ou a de um cinema. Há outras formas de se estar em comum como o comício político ou o jogo de futebol. Mas é esta uma comunidade exteriorizada, virada do avesso, em que se está com os outros justamente pelo lado animal. O uso do vídeo laicizou essa espécie de sagrado de uma sala de cinema. Mas é por isso que ao que dizem se está a voltar a essas salas. Nunca reparaste no estranho incómodo de ires ao cinema, quando ias, e haver pouca gente a assistir? O sagrado então degrada-se pela ausência de uma comunidade. Numa catedral deserta não o perdes porque está lá na luz dos vitrais, no eco dos teus passos ou de um rumor ausente pela cúpula das abóbadas. Mas no cinema vazio todo o mistério se desvanece na materialidade as cadeiras, das galerias. A imprensa, como o vídeo, pretendeu destruir a imposição da comunidade para afirmação do indivíduo. Mas se o vídeo destruiu tudo e deixou para si apenas a comodidade do sofá e de não sair à rua, o livro solitário fala-nos mais intensamente no secreto de nós. A cristandade numa catedral vive ou vivia o sagrado da oração numa presença totalizada de Deus. A relação a sós com a divindade que o protestantismo trouxe dissipou o que a transcendia na amplitude do sagrado. Algo se terá perdido da leitura colectiva na leitura individual? Mas é possível que a leitura em comum recolhesse da catedral a sacralização de se estar junto. Mas hoje a catedral já perdeu também esse sagrado. Está-se demasiado na rua para lá dentro se não estar. E é possível por isso que o sagrado se tenha transferido para a simples obra de arte, sobretudo para o seu santuário que é o museu. E é esse sagrado individualizado que talvez sintas no livro. Na sua revelação. Num certo receio de lhe desvendar o mistério. De te sentires um pouco violentado por ele ao ponto de o quereres, sem quereres, destruir, abrindo-o rasamente, aplanando-lhe as folhas que se encurvam, instrumentalizando-o com notas à margem e sublinhados, dobrando as folhas para 1he marcar o sítio em que o lês quando suspendes a leitura e o mais. Mas o mistério é mais forte e volta se o leres na intimidade de ti. E o destróis ou suspendes se o lês simplesmente numa praia ou num carro eléctrico. Mas então o que te interessa não é o seu mistério, mas simplesmente o que diz. Em todo o caso é mais viável para isso ler um simples policial ou um livro de anedotas.
Pensar o livro. E amá-lo desde a sua materialidade ao mistério da criação a que nele poderás assistir…
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001