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19 novembro 2025

paul éluard / e, através da ponte dos sentidos

  
 
 
E, através da ponte dos sentidos, pouco a pouco a solidariedade. Um amigo, uma amiga, e o mundo recomeça, retoma corpo a matéria informe. Uma linha recta passa através dos peitos. Os homens reúnem-se de novo e o infeliz volta a prender-se aos seus sorrisos, com um sorriso talvez um pouco menos amável que o dos tempos idos, mas mais justo, melhor. Recuperou-se no imaginar o que poderiam ser os seus irmãos se destruíssem a solidão em que viviam. Ouviu bramir o canto que se elevava da multidão compacta. E não mais voltou a sentir vergonha.
 
Os que o amavam eram inúmeros. Iam beber às fontes, trabalhavam contra o esforço que se perde na sombra. A dor fora sobrepujada, a árvore saía da terra, os seus frutos iam amadurecer, todos seriam com eles alimentados.
 
Que tinham então a ver com isto os fabricantes da moral? Um homem fora restituído aos seus semelhantes, um legítimo irmão.
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



13 outubro 2025

paul éluard / fresco

  
 
V
 
Partiu de um belo Verão
Para celebrar os ramos mortos
De uma floresta preta e branca
Igual à noite destruída
 
Partiu forte e valente
Para descansar na praia
Com uma mão que descansa
Um trabalho demasiado bem feito
 
Partiu da sua infância
Do mais fundo da esperança
Para encontrar o seu próprio fim
Todo enrugado de remorsos.
 
 
paul éluard
a cama a mesa
tradução de luís lima
barco bêbado
2021




06 fevereiro 2025

paul éluard / identidades

 
 
 
                                                a Dora Maar

 
 
Vejo os campos e o mar cobertos por um dia igual
Não há diferenças
Entre a areia que dormita
O machado à beira da ferida
O corpo em feixe desatado
E o vulcão da saúde
 
Vejo mortal e boa
O orgulho que retira o seu machado
E o corpo que respira a plenos desdéns sua glória
Vejo mortal e desolada
A areia que volta ao leito de partida
E a saúde que tem sono
O vulcão palpitante como um coração desvendado
E as barcas respigadas pelos ávidos pássaros
As festas sem reflexos as dores sem eco
Frontes olhos atormentados pelas sombras
Risos como encruzilhadas
Os campos o mar o tédio torres silenciosas torres
                                                          [sem fim
Vejo leio esqueço
O livro aberto das minhas janelas fechadas
 
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




26 setembro 2024

paul éluard / dignidade simétrica bem partilhada

 
 
 
Dignidade simétrica bem partilhada
Entre a velhice das ruas
E a juventude das nuvens
Janelas fechadas mãos trémulas de claridade
Mãos como fontes
E a cabeça dominada.
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




19 julho 2024

paul éluard / ainda escuto a voz

 



 

 

Ainda escuto a voz
 
Ama ama
Igual ao castanheiro te sentirás ficar
 
Floresta será a tua sombra
Na tua fronte poisam os pássaros e as estrelas
 
Só poderás dormir um sono todo outro
E outros olhos sem sono vigiarão nos teus
 
Ficarás como louco ao pensares na ventura
E tomarás nos braços as ramagens do sol
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



15 março 2024

paul éluard / a vitória de guernica

 
 
 
1
Belo mundo dos pardieiros
Da mina e dos campos
 
2
Caras boas para o fogo boas para o frio
Para as recusas para a noite para as injúrias para
                                                        [os golpes
 
3
Caras boas para tudo
Eis o vazio que vos fixa
Vossa morte vai servir de exemplo
 
4
A morte coração derrubado
 
5
Fizeram-vos pagar o pão
O céu a terra a água o sono
E a miséria
Da vossa vida
 
6
Diziam desejar a boa inteligência
Racionavam os fortes julgavam os loucos
Davam esmola dividiam um soldo ao meio
Saudavam os cadáveres
Cumulavam-se de delicadezas
 
7
Insistem exageram não são do nosso mundo
 
8
As mulheres as crianças têm o mesmo tesouro
De folhas verdes de Primavera e de leite puro
E de tempo
Nos olhos puros
 
9
As mulheres as crianças têm o mesmo tesouro
Nos olhos
Os homens defendem-se como podem
 
10
As mulheres as crianças têm as mesmas rosas
                                                          [vermelhas
Nos olhos
Cada uma mostra o seu sangue
 
11
O medo e a coragem de viver e de morrer
A morte tão difícil e tão fácil
 
12
Homens para quem este tesouro foi cantado
Homens por quem se perdeu este tesouro
 
13
Homens reais para quem o desespero
Alimenta o fogo devorador da esperança
Abramos juntos o último rebento do futuro
 
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977





19 janeiro 2024

paul éluard / fresco

 
 
II
 
A mais humilde flor de Janeiro
Está em louvor do Inverno
 
Um sangue negro brilha no rosto
De um homem morto por ter tido frio
 
As belas rosas de Julho
Perfumavam o seio materno
 
Cuja morte conta o paradeiro.
 
 
 
paul éluard
a cama a mesa
tradução de luís lima
barco bêbado
2021




20 outubro 2023

paul éluard / ela surge…

 



 

 
Ela surge – mas só à meia-noite, quando todos os pássaros brancos fecham as suas asas sobre a ignorância das trevas, quando a irmã das miríades de pérolas oculta as mãos na sua cabeleira morta, quando o triunfador se compraz na volúpia dos soluços, cansado das suas devoções à curiosidade, máscula e esplêndida armadura de luxúria. Ela é tão meiga que o meu coração se transforma. Eu temia as grandes sombras que tecem os tapetes do jogo e os vestidos, tinha medo das contorções do sol ao cair da noite, dos inquebráveis ramos que purificam as janelas de todos os confessionários onde as mulheres adormecidas nos esperam.
 
Ó busto de memória, erro de formas, linhas ausentes, chamas extintas dos meus olhos cerrados, estou perante a tua graça como uma criança na água, como um ramalhete de flores num grande bosque. Nocturno, o universo move-se no teu calor e as cidades de ontem têm gestos de rua mais delicados do que a flor do espinheiro, mais impressionantes do que a hora. A terra ao longe multiplica-se em sorrisos imóveis, o céu envolve a vida: um novo astro do amor desponta em todos os horizontes, e eis que os últimos sinais da noite se desvanecem.
 
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




21 janeiro 2023

paul éluard / aurora

 



 

Do sol que corre sobre o mundo
Estou tão certo como de ti
O sol deu à luz a terra
 
Um sorriso a raiar as noites
Sobre o rosto despojado
De uma adormecida a sonhar a aurora
 
O grande mistério do prazer
Esse estranho torneio de brumas
Que nos leva a terra e o céu
 
Mas nos deixa um ao outro
Feitos um para o outro eternamente
Ó tu que arranco ao esquecimento
 
Ó tu que eu quis feliz
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
roupeiras ligeiras
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002





05 julho 2022

paul éluard / dito do amor

 
 
I
 
O nosso silêncio fará calar a tempestade
Tornará sensata a folhagem profunda
 
Tenho nas mãos duas mãos abandonadas
 
 
II
 
Este barco estava mergulhado para sempre na bruma
 
Quem fala de ódio de longe em longe
Mais de perto vai dizendo o amor
 
 
III
 
Os olhos penetrantes soberana inocente
Os seios leves de tudo ela ria
 
E o mar dispersou a areia do seu trono.
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
o duro desejo de durar 1946
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002

28 fevereiro 2022

paul éluard / diálogo

 
 
 
Belo invento coberto de vergonha
Memória de oiro enrolada no chumbo
Amor glorioso posto fora do leito
Natureza nobre manchada por anões
 
Vinde ver o sangue nas ruas
 
Somos muitos a recusar
Que seja o sol uma faca
Que seja o mar um veneno
Somos muitos a querer viver
 
Nada nem mesmo a vitória
Encherá o terrível vazio do sangue:
Nada, nem o mar, nem os passos
Do saibro e do tempo
Nem o gerânio ardendo
Por sobre a sepultura.
 
Muitos de nós perderam a vida
Na esperança de um mundo melhor
Inocentes seguros dos seus direitos
Eu lhes sorrio e me sorriem
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971



01 outubro 2021

paul éluard / fresco






I

 
Eu era aquele que se passeia
De nariz no ar
Com o cão de nariz a rasar
Era também aquele que colhe violetas
E que arranja varetas
Para ceifar as ervas altas
Eu brincava eu gritava
Atirava-me às garotas
Minhas mãos pequenas e ligeiras
Só conheciam o seu mistério
 
A morte nunca havia
Nada cortado não a sabia
Não passava ainda pelos meus ouvidos
A vida era perfeita.
 
 
 
paul éluard
a cama a mesa
tradução de luís lima
barco bêbado
2021





 

03 setembro 2021

paul éluard / irmãs de esperança

 
 
Irmãs de esperança ó mulheres corajosas
Que contra a morte tendes feito um pacto
O de unir as virtudes do amor
 
Irmãs sobreviventes
Que jogais vossa vida
P’ra que a vida triunfe
 
Aproxima-se o dia ó irmãs de grandeza
Para rir das palavras guerra dor e miséria
E do que foi a dor já nada restará
 
Cada rosto terá seu direito à carícia.
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971





12 fevereiro 2021

paul éluard / eu falo em sonho

 
 
Nos veios da nossa cidade
Estendiam-se os homens pobres diabos
Um rosário de amores infantis
E bem comportados como cristais
 
Sobre todos os caminhos dos nossos olhos
Pavoneavam-se mulheres sagradas
Como véus de mulheres casadas
Intactos ou remendados pesados ou luzidios
 
Estou a falar em sonho e transmito
O curto instante do grande repouso
O momento em que nada é impossível
Um pouco mais de carne e mel a mais
Estar enlevado é uma forma de realidade.
 
 
 
paul éluard
últimos poemas de amor
corpo memorável 1948
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002





26 outubro 2020

paul éluard / o espelho de um momento

 
 
Dissipa o dia,
Mostra aos homens as leves imagens da aparência,
Retira aos homens a possibilidade de se distraírem
É duro como a pedra,
A pedra informe,
A pedra do movimento e da vista,
E o seu brilho é tal que todas as armaduras, todas
                                  [as máscaras, se tornam falsas.
O que a mão tomou desdenha tomar a forma da mão.
O que foi compreendido já não existe.
A ave confundiu-se com o vento,
O céu com a sua verdade,
O homem com a sua realidade.
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




15 abril 2020

paul éluard / aqui



Uma rua abandonada
Uma rua profunda e nua
Onde os loucos têm menos dificuldade
Que os sensatos a safar-se
Nos dias sem broa e sem carvão

É uma questão de dimensão
N sensatos para um louco
E nada mais para lá da imensa
Maioria do bom senso
Um dia cru sem proporções

A rua tal uma ferida
Que não voltará a fechar-se
Que o domingo torna ainda maior
O céu é um céu de outro lugar
Senhor de uma terra estranha

Um céu cor-de-rosa um céu bem-disposto
A transpirar beleza e saúde
Sobre a rua sem perspectiva
Que me corta o coração em dois
Que me priva de mim próprio

Na rua não se passa nada nem ninguém.



paul éluard
últimos poemas de amor
o duro desejo de durar  1946
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002






25 dezembro 2019

paul éluard / viver é partilhar



Viver é partilhar  odeio a solidão
A grilheta da morte quer-me reter ainda
Já não beijo ninguém como beijava dantes
O pão era sinal de ser feliz
O bom pão que nos torna mais quente o nosso beijo

Como abrigo possível só há o mundo inteiro
P’ra mim viver é hoje responder aos enigmas
É renegar a dor que é cega de nascença
E sempre em pura perda estrela sem qualquer brilho
Viver perder-se para reencontrar os homens

Que a palidez do rio encubra o do arroio
Que olhos de maravilha vejam tudo em seu lugar
A miséria acabada e os olhares lavados
Uma ordem crescendo do grão à flor à árvore
Andaimes vivos a sustentar o mundo

A criança a renascer em cada homem e rindo.


paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971






12 agosto 2019

paul éluard / o último suspiro



Com uma flecha morre um pássaro
Em teus ombros escombros
Pende uma réstia de luz
Valem menos os anos que os dias
E a vida é menos que o amor.

Tua vales ainda um beijo
Só o tempo de sentir
O quanto desperto estou
Tudo é claro sob este lençol branco
Que te liberta e me espera



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






02 julho 2019

paul éluard / a perder de vista



NO SENTIDO DO MEU CORPO


Todas as árvores com todos os ramos com todas
                                                                      [as folhas
A erva na base dos rochedos e as casas
                                                               [amontoadas
Ao longe o mar que os teus olhos banham
Estas imagens de um dia e outro dia
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A transparência dos transeuntes nas ruas do acaso
E as mulheres exaladas pelas tuas pesquisas
                                                                  [obstinadas
As tuas ideias fixas no coração de chumbo nos
                                                              [lábios virgens
Os vícios as virtudes tão imperfeitos
A semelhança dos olhares consentidos com os
                                                [olhares conquistados
A confusão dos corpos das fadigas dos ardores
A imitação das palavras das atitudes das ideias
Os vícios as virtudes tão imperfeitos

O amor é o homem inacabado.



paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






02 maio 2019

paul éluard / em primeiro lugar



IV

Disse-to pelas nuvens
Disse-to pela árvore do mar
Por cada onda pelos pássaros nas folhas
Pelos calhaus do ruído
Pelas mãos familiares
Pelos olhos que se volvem rosto ou paisagem
E o sono dá-lhe o céu da sua cor
Por toda a água da noite
Pelas linhas das estradas
Pela janela aberta por uma fronte descoberta
Disse-to pelos teus pensamentos pelas tuas palavras
Toda a carícia toda a confiança sobrevivem.


paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977