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13 dezembro 2023

manuel de freitas / but not for me (billie holiday)

 




 

                         

Desistir do rosto, dos propósitos, das
palavras. Há sílabas assim.
Com a vergonha do afecto
emprestada ao desalinho das mesas.
 
Por ali, encenando a imobilidade,
a rudeza de haver dor.
Eu sei que não virás.
Bebo por ti, sem ti, contra ti,
com o coração no bengaleiro
a fingir que não, não faz diferença.
 
E o pior é que até faz,
por muito que ninguém o saiba.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002





08 dezembro 2022

manuel de freitas / pastelaria




                          

Sim, deve ser Outono. Começaram
a destruir a cidade (prioridades
automóveis, dizem) e o cu do Duque
da Terceira resigna-se fechadamente
ao rigor dos novos eléctricos.
 
Estou à tua espera – enredo banal,
cigarrilhas. Um novelo de fumo
abraça a espanhola que se
contorce no balcão para apagar um traço
mínimo de chocolate (pouco importa,
meus senhores, se ela leu ou não Pessoa).
 
Chegam depois as primeiras putas num cais
sem marinheiros. Abafado pelo trânsito,
o protesto de um negro mal fodido. E bares
de esquina, lulas fritas, anzóis de vários
feitios – há quem que o amor, também.
 
Encostada aos bolos da véspera,
a estória irremediavelmente fútil
do casalinho louro que nunca pôde
ter filhos. Lisboa adormece e é Outono,
no peso de um «caralho!» um pouco
mais sonoro, vindo do telefone público.
 
E os empregados, hirtos e dominicais,
passeiam o bigode, o brandy mortal
dos dias sempre assim. Enquanto
(vamos supor) te espero sentado
e o poema se escreve aberto sobre o Tejo.
 
Quanto custa a carne, aqui?
Barcos que apesar de tudo
comprometem estas coisas
e seguem para índia nenhuma
ou para a américa geral de todos
(massacre ao domicílio, pois
fumar provoca doenças cardiovasculares).
Vamos falar limpo, agora.
 
Sim, deve ser Outono, pela calamidade
dos sorrisos que esperam um nome
mais amplo ou um deus
transitável que subscreva a dor
e invente este mundo falso.
 
Mas eu estou de facto à tua espera,
com a metafísica no cinzeiro
ao lado e os testículos debicados
por uma pomba entediada (Francesco
Provenzale by Florio). Entardece aqui,
deveras. Como uma canção já velha.
 
Deve ser Outono, Inverno, pernas
de gazela fria que acalentam trapos
numa reza. São Paulo
lhes valha esta noite, pois não são
esperadas como tu, meu amor,
e hão-de receber o dízimo com um sorriso
profissional, facas de fingir nos bolsos.
 
O Outono já deu que falar, suponho.
Uma reforma pequena que nos surpreende
vivos, encostados a ninguém, palitando
os dentes da tarde. sim,
essa moral da estória: não haver.
 
Enquanto se acumulam bandeiras
e insígnias torpes. Ou gestos suburbanos,
sob um ecrã de cinza que espanca
qualquer ressentimento. Quantas horas
morreste, bem feitas as contas?
– pergunta o herói siderúrgico
à rapariga do quiosque em frente
(que não se chama Liberdade,
segundo fontes fidedignas).
 
Comboios que vão partir, Laforgue,
jornais por ler. Ou as palavras
cariadas que o haxixe tornou
mais sábias: «eu, a bem dizer, não existo».
Sombras de lodo a revirarem-se
de novo nas paredes do léxico
que nos coube em sorte. Este
azar profundo, quando às sete e meia
da tarde Herberto Helder descia
paulatinamente a rua do Alecrim
numa pose de cidadão (desconfiar
das aparências, eis o inferno. Aqui.).
 
Sim, deve ser Outono. Em Pequim,
Lisboa ou Belfast. Começaram
a destruir a cidade e a segredar infâmias
no intervalo dos tremoços. Há uma certeza
de rastos que não vem quando a chamamos.
 
Por outras palavras, amo-te.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002


 


 

22 janeiro 2022

manuel de freitas / alta definição

 
 
                          [para o Carlos Luís Bessa]

 
Escombros, «coisas assim», a raiva
de todos os partidos
a adivinhar-se sem fulgor, murada.
Tristes evidências, triste
desobedecer. Na rua da Alegria
existe ainda uma taberna
com vista para as pombas
e os prédios muito em derrocada.
Que sei eu? na televisão
resgatam corpos sem rosto
de um rio que não passou na minha infância.
O Inverno, como é sabido,
pode ser mortal. «Nós cobrimos
o acontecimento» - parabéns,
o horror em directo fica mais bonito.
 
Convido-te para um copo,
aqui onde tudo finda
– alegria nenhuma, débeis parras
de fingir. Se entardece
ou chove
já não sei falar.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




08 setembro 2020

manuel de freitas / ccb, 2002



Abrem-se devagar os túmulos
– e entramos neles.
É o nosso ofício, talvez o único.
Esperámos, anos fartos, o vazio.
Não há engano possível,
não há regresso. Todas
as ilhas devagar nos mentem.

Dançava perto de ti,
talvez demasiado só, uma
estrela d´nada, bo dispidida.

Não me digas que não ouviste.



manuel de freitas
cretcheu futebol clube
assírio & alvim
2006






29 julho 2020

manuel de freitas / prólogo



O tempo, esse pequeno escultor,
prolongou-te os gestos
até à exaustão, ao limite do escárnio,
ao inoportuno reclame daquele
que vai morrer e não morre
e fala demasiado sobre o silêncio do seu grito.

Paciência. Não poderia ter sido de outra
maneira. Há uma infância parada,
onde o cadáver de deus
nada quer dizer. Sim, tem chovido muito.
Mas que saberá destas mesmas horas
o gato negro que a tua mão já não encontra?

Deténs-te, usas palavras vãs. Despedes-te.
Sabes que foi sempre assim.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002






18 fevereiro 2019

manuel de freitas / strela negra




                                           para o Rui


Sabemos há muito tempo
que são cada vez mais frias
as manhãs. E, no entanto,
teimas em inventar
um biombo para a morte,
um rosto de arame
que conhece os últimos porteiros.

A suave desrazão daquele
charro fez-nos perceber
subitamente tudo,
enquanto confundias
o Largo do Conde Barão
com a Praça do Rossio
e a poesia
com o corpo mais ausente.

Mas vou ter de concordar
que era alegre, demasiado alegre,
a música dos táxis nessa noite:
30 de Dezembro de 2004.



manuel de freitas
cretcheu futebol clube
assírio & alvim
2006





02 julho 2018

manuel de freitas / sumário




Tão real que até faz pena. Tirou
a dentadura para sorver as últimas pedras
de gin no cibercafé do bairro alto.
Depois descalçou-se e foi outra vez
Estrangeira e loura, como se houvesse morte
para isto. Aquela que haverá, decerto,
e nos encontra mudos ao final da tarde.

Nós, digamos assim, tínhamos visto tudo.
Só não sei quem chorava mais: tu
ou o ar condicionado da 24 de Julho.
Os semáforos, em vez do coração,
lembravam um pénis no lavatório
à espera de outro poema

e da vida nem por isso.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002






03 janeiro 2017

manuel de freitas / duas vezes nada



É assim, amiga. Encontramo-nos
quando calha nos bares de antigamente,
deixando que sobre o tampo azul
das mesas volte a pousar
um baço cemitério de garrafas.

Constatamos o pior, os seus aspectos.
Corpos e livros que foram ficando
por ler na voracidade da noite de Lisboa.
De facto, crescemos em alcoolémia,
acordamos tarde, em pânico,
e perdemos os dias e os dentes
com uma espécie de resignação.
Não temos, ao que parece, serventia.

Sorrimos um pouco, ao terceiro
gin, como quem renasce para a morte,
seus gestos de ternura ou de exuberância.
Talvez tenhamos calculado mal
o ângulo da queda, esta vitória
sem nobreza dos venenos todos.

Mas agora é tarde. Tudo fechou
para nós, para sempre. O amor,
o desejo, até o onanismo da destruição.
Antes de procurares a esmola
do último táxi, fica esta imagem
parada, a desvanecer-se
no frio mais frio da memória:

não dois corpos sentados a trocarem
medo, cigarros e palavras póstumas
mas duas vezes nada, ninguém,
o silêncio da noite destronando
as cadeiras onde por razão nenhuma
nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002



06 janeiro 2016

manuel de freitas / largo do peneireiro


                                            [para a Inês]

  
Tudo se perde, claro. Mas lembrarei
seguramente os olhos vermelhos
de um gato de Alfama e todos os poemas
que não escrevi contra mim próprio,
naquele pátio aberto a ciladas e dissipações.

Vinho tinto, charros, paixões escarnecidas
num diálogo de guitarras desatentas.
Tu fazias vinte e quatro anos, é certo,
e dizias com maior razão que aqueles olhos na noite
pertenciam a uma gata. Perdida, achada luz,

quando se percebe o desabrigo, a difícil
pertença a esta espécie de gente,
comunidade de louco deserdados a que
o empregado, de bigode, chamou
«o pessoal da bebedeira». Porque isto
que não passa, sabemo-lo bem, é a vida

ou a morte, uma perda que dura
e que não se apaga assim, sob um cerco
de navalhas ou de inúteis, vigorosos
sentimentos. Por exemplo o amor,
essa estranha mistura de angústia, desejo
e novamente angústia. O não apenas sexo
de adormecer em braços reais
que afastem para sempre o mundo.

Mas acabo por subir cambaleante as escadas
à hora em que o vizinho de baixo
se prepara para ser uma pessoa altamente
honrada, no talho de bairro
que lhe dá sentido aos dias.

E não é dor, nem prazer, nem
ressentimento o que um corpo
sente, às seis da manhã, prostrado
na lama involuntária destes versos.
Antes um vazio imperfeito, uma
ferida sem lugar que nenhuns lábios,
sequer os teus, saberiam calar.

Fizeste, já disse, vinte e quatro anos.
Não esperes grande coisa da felicidade.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




21 maio 2015

manuel de freitas / 5 601036 307313



Dizem que ressuscitou o rock
numa pose de vampiro. Não sei.
Pelas olheiras, sobre o cabedal
tão velho, mais parece um agarrado,
desses que costumo encontrar
no 42. Mau hálito tem - quase tanto
como a voz. Mas leva sempre
suminhos, cremes de beleza, fiambre.
Dá-me a ideia que nele até o olhar
cansado é uma mentira cosmética,
que depois usa em voz alta contra o tal
"sistema". Eu talvez gritasse melhor.

  

manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001




14 fevereiro 2015

manuel de freitas / 8 410500 001100



Estou a ver o estilo: a folha de canabis
ao peito, os óculos de Foucault
não-li e uma devoção macrobiótica
tão estúpida quanto inquebrantável.
Esta gente custa - e o que é pior:
cheira mal. Assoa-se à manga
da camisola, cheio de ideologia
nos sovacos. E vem fazer compras
como se estivesse outra vez no Lux,
entre amigos abstémios que só
não legalizam a vida porque
ainda há limites para o mau gosto.

  

manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001





17 setembro 2014

manuel de freitas / 5 000329 002209




Conheço-lhe a tromba da televisão,
com a barba rude, intelectual, tão preta
- mas a dela também, loura e
desfocada. Acho que é dos jornais.
São esquisitos, nunca falam
(entre eles, ou comigo).
Não me agrada assim tanto
dizer "boa tarde" a Deus, enquanto
vou passando vinhos caros, gin
e produtos bizarros cuja serventia
desconheço. Se a esquerda é isto,
bem posso ir esperando subsídios,
aumentos, um funeral mais em conta.




manuel de freitas
isilda ou a nudez dos códigos de barras
black son editores
2001




30 abril 2014

manuel de freitas / terceiro direito




O inferno, aqui. Deve ser normal.
Um choro de criança, no andar
de cima, sobrepõe-se à música
que não ouço e que é talvez de Brel
(nenhum quarteto de Mozart serviria agora).

Há dias assim. Os guindastes
da insónia não seguram a voz, desastre
anunciado pela teimosia dos pássaros
suburbanos. Coisas de muito esquecer,
se eu pudesse. Mas o corpo hesita,

volta a ser o envelope vazio
de um destino por assinar ─ e que
nada tem, neste momento, de «literário».
Sinto a luz na garganta, sufoco

discretamente, alheio ao excesso
de imagens que me traz o dia.
A alegria, se quiserem, fica para mais
tarde. Aqui, de novo, morre-se muito mal.



manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




30 janeiro 2014

manuel de freitas / el salsero


                                        [para o Manuel João Fradique]

I
Os homens são assim. Bebem de mais,
cantam, esconjuram a morte
chamando-a para mais perto — e ela vem.
É uma ciência nocturna, a dos
homens, enquanto copos e garrafas
martelam sobre o balcão
os compassos de uma música sem saída.

É tão triste às vezes saber
que «à sombra do milho verde
namorei uma cachopa» ─  ou
pedir ao rosto de ninguém
que nos beije muito, como se fosse
esta noite a última vez...
Tão triste, numa noite realmente
última, lembrar outra vez os amigos
que hoje aqui não estão por terem
bebido mais depressa o mesmo copo
letal que nos afasta da morte...

Amores, desamores, injúrias
palavras vizinhas dos punhais.
Coisas que os anos foram sepultando,
quase com doçura ou escárnio.
Porque os homens, quando bebem,
conhecem imensamente a loucura,
sentem nos ombros mais velhos
o peso insidioso da melancolia.
E não é fácil de ver, tanta dor.

Isso mesmo que certas canções
ou a névoa do haxixe nos fazem esquecer
por breves instantes uma vida inteira.
Isso mesmo, ainda, que na derrota
de um sorriso se confunde com o
sudário dos dias. Porque dentro destas
quatro paredes, sabíamos bem, era
proibido amanhecer. Só muito mais tarde,
já sem alma nem dinheiro, os corpos
voltariam a rastejar para a
maldição da luz. Com uma canção
mais fria a escurecer-lhes os lábios.

II
Empalidece agora o sorriso do gusano
na parede, ferem mais as palavras
sem rnesura de Chavela Vargas
e a certeza subitamente real deste último
trago entre os últimos da festa.
As garrafas de várias cores não voltarão
A derramar o seu cálido perfume
e há, talvez, um mapa de afectos que
soçobra, um poema que ninguém escreveu.

Mas a perdição continuará, noutros
sítios, em casa de gente que morre
e entristece de tanto viver. Os dolorosos
amigos. Existirá sempre um vinho forte
a alimentar o epicentro do pânico,
aí onde apenas o vazio tem mãos
capazes de nos amparar na queda.

O que não lemos, o que não amámos,
os países que desconhecemos — tudo isso
ficará dentro destas paredes condenadas
à destruição e às prepotentes razões do lucro.
Perder ─  eis a nossa vocação, a única. Com um
relâmpago de sombra nos olhos apagados.

III
O teu amigo, porém, regressa — abre
pela última vez a porta larga do inferno
e anuncia para a escuridão dos rostos
que «já é dia». Finge também ele sorrir,
perder de pé. Porque há evidências inaceitáveis,
manhãs de metal que nos surpreendem vivos.

Só no táxi abraçamos a certeza do fim, agora
mais palpável, e o dia demolido que nos espera.
Há horas assim — de que a própria morte
se apiedaria, se tivesse tempo.
Uma canção que regressa só para nos dizer
que a perdemos, que é tão tarde o corpo.


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




21 outubro 2013

manuel de freitas / weinen, kla gen, sor gen, za gen (bwv 12)


                        [ para o Barnabé, felino]


A carne é triste, mas eu leio pouco,
menos ainda do que o meu gato,
que talvez desculpe um dia
o indemonstrável possessivo
que escrevi sem muita convicção.

Pode-se fazer tanta coisa, à noite.
Ouvir por exemplo Bach
— o pai —, tendo por único
cuidado uma atenção distraída
ao gelo que estala no copo
de vidro indonésio. Sim,
não me parece que eu seja,
para já, «politicamente correcto».

— Ou experimentar o amor,
de novo e sempre o amor,
com frias e esgotadas lágrimas
de lume. E, se o amor não
vem (acontece), posso ir dizê-lo
a ninguém, à porta de bares sombrios,
sem esperar sequer um poema.

Porque nem tudo se escreve,
percebe acordando o gato.
Possa ele também não saber,
neste Inverno, que a carne
é mesmo uma coisa muito triste.



manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002