[para o
Manuel João Fradique]
I
Os homens
são assim. Bebem de mais,
cantam,
esconjuram a morte
chamando-a
para mais perto — e ela vem.
É uma
ciência nocturna, a dos
homens,
enquanto copos e garrafas
martelam
sobre o balcão
os compassos
de uma música sem saída.
É tão triste
às vezes saber
que «à
sombra do milho verde
namorei uma
cachopa» ─ ou
pedir ao
rosto de ninguém
que nos
beije muito, como se fosse
esta noite a
última vez...
Tão triste,
numa noite realmente
última,
lembrar outra vez os amigos
que hoje
aqui não estão por terem
bebido mais
depressa o mesmo copo
letal que
nos afasta da morte...
Amores,
desamores, injúrias
palavras
vizinhas dos punhais.
Coisas que
os anos foram sepultando,
quase com
doçura ou escárnio.
Porque os
homens, quando bebem,
conhecem
imensamente a loucura,
sentem nos
ombros mais velhos
o peso
insidioso da melancolia.
E não é
fácil de ver, tanta dor.
Isso mesmo
que certas canções
ou a névoa
do haxixe nos fazem esquecer
por breves
instantes uma vida inteira.
Isso mesmo,
ainda, que na derrota
de um
sorriso se confunde com o
sudário dos
dias. Porque dentro destas
quatro
paredes, sabíamos bem, era
proibido
amanhecer. Só muito mais tarde,
já sem alma
nem dinheiro, os corpos
voltariam a
rastejar para a
maldição da
luz. Com uma canção
mais fria a
escurecer-lhes os lábios.
II
Empalidece
agora o sorriso do gusano
na parede,
ferem mais as palavras
sem rnesura
de Chavela Vargas
e a certeza subitamente
real deste último
trago entre
os últimos da festa.
As garrafas
de várias cores não voltarão
A derramar o
seu cálido perfume
e há,
talvez, um mapa de afectos que
soçobra, um
poema que ninguém escreveu.
Mas a
perdição continuará, noutros
sítios, em
casa de gente que morre
e entristece
de tanto viver. Os dolorosos
amigos.
Existirá sempre um vinho forte
a alimentar
o epicentro do pânico,
aí onde
apenas o vazio tem mãos
capazes de
nos amparar na queda.
O que não
lemos, o que não amámos,
os países
que desconhecemos — tudo isso
ficará
dentro destas paredes condenadas
à destruição
e às prepotentes razões do lucro.
Perder
─ eis a nossa vocação, a única. Com um
relâmpago de
sombra nos olhos apagados.
III
O teu amigo,
porém, regressa — abre
pela última
vez a porta larga do inferno
e anuncia
para a escuridão dos rostos
que «já é
dia». Finge também ele sorrir,
perder de
pé. Porque há evidências inaceitáveis,
manhãs de
metal que nos surpreendem vivos.
Só no táxi
abraçamos a certeza do fim, agora
mais
palpável, e o dia demolido que nos espera.
Há horas
assim — de que a própria morte
se
apiedaria, se tivesse tempo.
Uma canção
que regressa só para nos dizer
que a
perdemos, que é tão tarde o corpo.
manuel de freitas
[ sic ]
assírio
& alvim
2002