30 abril 2014

manuel de freitas / terceiro direito




O inferno, aqui. Deve ser normal.
Um choro de criança, no andar
de cima, sobrepõe-se à música
que não ouço e que é talvez de Brel
(nenhum quarteto de Mozart serviria agora).

Há dias assim. Os guindastes
da insónia não seguram a voz, desastre
anunciado pela teimosia dos pássaros
suburbanos. Coisas de muito esquecer,
se eu pudesse. Mas o corpo hesita,

volta a ser o envelope vazio
de um destino por assinar ─ e que
nada tem, neste momento, de «literário».
Sinto a luz na garganta, sufoco

discretamente, alheio ao excesso
de imagens que me traz o dia.
A alegria, se quiserem, fica para mais
tarde. Aqui, de novo, morre-se muito mal.



manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




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