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25 janeiro 2024

antonio gamoneda / envelheceu dentro de teus olhos

 
 
 
Envelheceu dentro de teus olhos; eras a doçura e o
extermínio e amei teu corpo em seus frutos nocturnos.
 
 
Tua inocência é como uma faca diante do meu rosto,
 
 
mas pesas no meu coração e, como um mel escuro,
sinto-te em meus lábios ao encaminhar-me para a
morte.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999
 




08 março 2023

antonio gamoneda / meu rosto ferve nas mãos do escultor cego



 

 
Meu rosto ferve nas mãos do escultor cego.
 
 
Na pureza dos pátios imóveis ele pensa docemente nos
suicidas; está a criar a velhice:
 
 
ontem e hoje são já o mesmo dia no meu coração.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999
 


 


20 março 2022

antonio gamoneda / não tenho medo nem esperança

 
 
Não tenho medo nem esperança. De um hotel fora do
destino, vejo uma praia negra e, longínquas, as gran-
des pálpebras de uma cidade cuja dor não me afecta.
 
Venho do metileno e do amor; tive frio debaixo dos
tubos da morte.
 
Agora contemplo o mar. não tenho medo nem espe-
rança.
 
 
 
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999



 

22 março 2018

antonio gamoneda / teu cabelo encanece entre minhas mãos e




Teu cabelo encanece entre minhas mãos e, como
águas silenciosas, as recordações abandonam-nos.
Sinto a frialdade da existência mas teu cheiro espa-
lha-se nos quartos e tua lascívia vive em meu coração
e meu pensamentos penetra em tuas feridas.



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999











26 setembro 2015

antonio gamoneda / o esquecimento é a minha pátria vigiada



O esquecimento é a minha pátria vigiada e ainda tive um país mais vasto
                e desconhecido.

Regressei no meio de um silêncio de pálpebras àqueles bosques em
                que fui perseguido por pressentimentos e propostas de homens
                enfermos.

É aqui onde o medo vê a força do teu rosto: a tua realidade no
                desaparecimento

(que se estendia como chuva no fundo da noite; mais lenta que a
                tristeza, mais húmida que lábios sobre o meu corpo).

Eram os dias grandes da traição.


Alimentava-me a fosforescência . tu criaste a mentira entre as per-
                nas da minha mãe; não existia a dor e tua criaste a compaixão.


Tu voltavas às hortênsias


e soluçaste debaixo da lente dos comissários.


Eu vi a luz da inutilidade.


A minha boca é fria nas preces. Este relato incompreensível é o que
                resta de nós. A traição prospera em corações invioláveis.


Profundidade da mentira: todos os meus actos no espelho da mor-
                te. E os carvões resplandecem sobre a pele de heróis ainda des-
                pertos no umbral da imbecilidade.


E esse alarido entre cristais, essas feridas que não são visíveis senão
                no instante do amor…

Que hora é esta, que erva cresce na nossa juventude?



antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2003



14 junho 2015

antonio gamoneda / alguém entrou na memória branca



Alguém entrou na memória branca, na imobilidade
do coração.

Vejo uma luz debaixo da névoa e a doçura do erro
faz-me fechar os olhos.

É a ebriedade da melancolia; como aproximar o
rosto de uma rosa doente, indecisa entre o perfume e
a morte.



antonio gamoneda
ainda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999



04 fevereiro 2014

antonio gamoneda / tenho frio junto aos mananciais




Tenho frio junto aos mananciais. Subi até cansar o
coração.


Há erva negra nas ladeiras e açucenas roxas entre
sombras, mas, - que faço diante do abismo?


Sob as águias silenciosas, a imensidão carece de sig-
nificado.



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999




22 janeiro 2013

antonio gamoneda / geórgica


  

Entre o estrume e o relâmpago escuto o grito do pastor.

Ainda há luz sobre as asas do gavião e eu desço às fogueiras húmidas.

Ouvi o sino da neve, vi o fungo da pureza, criei
o esquecimento.




antonio gamoneda
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001



01 janeiro 2013

antonio gamoneda / houve um tempo…


  

Houve um tempo em que as minhas únicas paixões
     eram a pobreza e a chuva.


Agora sinto a pureza dos limites e a minha paixão
     não existiria se eu soubesse o seu nome.


  
antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999




27 novembro 2012

antonio gamoneda / um bosque abre-se…


  

Um bosque abre-se na memória e o cheiro a resina é útil
ao meu coração. Vi as esferas do suor e os
insectos na doçura;


depois, o crepúsculo em seus olhos;


mais tarde, o cardo a ferver perante o centeio e a fadiga
dos pássaros perseguidos pela luz



antonio gamoneda
livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999


26 agosto 2012

antonio gamoneda / poema 2






Lancei ao abismo o osso da misericórdia; não é neces-
sário quando a dor faz parte da serenidade, mas a luci-
dez trabalha em mim como um álcool enlouquecido.


Sei que as unhas crescem na morte. Não


chega ninguém ao coração. Despojamo-nos de nós mesmos
ao expulsar a falsidade, esfolamo-nos e


não vem ninguém. Não
há sombras nem agonia. Bem:
não haja mais do que luz. Assim é
a última embriaguez: partes iguais
de vertigem e esquecimento.  




antonio gamoneda
trad. de hugo branco  
4º encontro de poesia de aveiro


24 fevereiro 2012

antonio gamoneda / sábado






Meu rosto ferve nas mãos do escultor cego.


Na pureza dos pátios imóveis ele pensa docemente nos
suicidas; está a criar a velhice:


ontem e hoje são já o mesmo dia no meu coração.





antonio gamoneda
livro do frio
(sábado)
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999


23 dezembro 2011

antonio gamoneda / descrição da mentira





Neste país, neste tempo cuja angústia se desenha em lápides de
     mercúrio,

vou estender os meus braços e penetrar na erva,

vou deslizar na espessura do azevinho para que tu me advirtas,
     para que me convoques na humidade das tuas axilas.

Ainda há luz sobre os ramos abatidos e o meu valor descobre-se em
     sílabas nas quais tu e os rostos actuam como grânulos silvestres,

como espermas excitados até penetrarem na bugia do som,

até submergirem  o meu corpo em águas que não palpitam,

até cobrirem o meu rosto com as pomadas da majestade.

Não é uma glorificação, não é que tenha caído púrpura sobre os
     meus ossos;

 é mais belo e antigo: alentar sobre o vinagre até o tornar azul,
     adiantar uma faca e retirá-la húmida de uma exsudação que
     dignifica o esgrimista.

Agradeço a pobreza para que a pobreza não me maldiga e me
     conceda anéis que me distingam de quando fui puro e legislava
     na negação.

Cheiro os testemunhos do que é sujo sobre a terra e não me recon-
     cílio mas amo o que ficou de nós.

Estou velho de mim mesmo, porém há estigmas. Chegaram os vi-
     sitantes. Há formigas debaixo das chagas.

Sinto a fertilidade que se refugia na ira dos meus cabelos e ouço a
     fuga das espécies que nos abandonaram.

Cessei a compaixão porque a compaixão me entregava a príncipes
     cujas medalhas se afundavam no coração das minhas filhas.

Eu farei com os príncipes uma destilação que será nociva para eles
     mas excitante e doce na povoação como é o sumo guardado
     em vasilhas muito escuras.

Não recorrerei à verdade porque a verdade disse não e colocou
     ácidos no meu corpo.

Que verdade existe no ventre das pombas?

A verdade está na língua ou no espaço dos espelhos?

A verdade é o que se responde às perguntas dos príncipes?

Qual é então a resposta às perguntas dos oleiros?

Se levantares uma túnica encontrarás um corpo mas não uma
     pergunta:

para quê as palavras enxutas em cíngulos ou as construídas em
     esquinas imóveis,

as convertidas em lâminas e, em seguida, despojadas e ávidas?

Ou melhor: alguma vez fui cínico como asfalto ou pelame?

Não se trata disso, apenas que o asfalto possuía a minha memória e
     as minhas exclamações relatavam a perdição e a inimizade.

A nossa sorte é difícil reclusa na beladona e nos recipientes que
     não devem ser abertos.

Sujo, é o mundo; porém respira. E tu entras no quarto como
     um animal resplandecente.

Depois do conhecimento e do esquecimento que paixão me con-
     cerne?

Não hei-de responder mas sim reunir-me com tudo o que está ofe-
     recido nos átrios e na distribuição dos resíduos,

com tudo o que treme debaixo da noite.





antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2003


21 novembro 2011

antónio gamoneda / pavana impura




Envelheceu dentro de teus olhos; eras a doçura e o extermínio e amei o teu corpo em seus frutos nocturnos.

Tua inocência é como uma faca diante de meu rosto,

mas pesas no meu coração e, como um mel escuro, sinto-te em meus lábios ao encaminhar-me para a morte.



  

antonio gamoneda
livro do frio
(pavana impura)
trad. de José bento
assírio & alvim
1999



21 setembro 2009

antonio gamoneda / o vigilante da neve







Fingia um rosto no ar (fome e marfim dos hospitais
andaluzes); na extremidade do silêncio, ele ouvia a
campainha dos agonizantes. Olhava-nos e nós sentía-
mos a nudez da existência. Velozmente, abria todas
as portas e derramava o vinho sobre o gelo de ama-
nhecer. Depois, a soluçar, mostrava-nos as garrafas
vazias.








antonio gamoneda
livro do frio
(2-o vigilante da neve)
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999







16 novembro 2008

antonio gamoneda / ainda







Há uma erva cujo nome não se sabe; assim foi a
minha vida.


Regresso a casa atravessando o Inverno: esquecimento
e luz sobre as roupas húmidas. Os espelhos estão
vazios e nos pratos cega a solidão.


Ah a pureza das facas abandonadas.









antonio gamoneda
livro do frio
(3-ainda)

trad. de josé bento
assírio & alvim
1999







13 maio 2008

que sabes tu da mentira







(…)

Que sabes tu da mentira, que sabes tu das substâncias suportáveis?


Como entrareis na minha paciência? A minha língua é velha em
duas cascas. Amo e não desejo.



Como entrareis na minha paciência? Inclusive tu, se não envelhe-
ceres, como me entregarás a tua juventude?

(…)







antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2007



07 julho 2007

sábado






Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.




Isto era o destino:


chegar à margem e ter medo da quietude da água.











antonio gamoneda
livro do frio
(5-sábado)
trad. de José bento
assírio & alvim
1999





21 novembro 2006

antonio gamoneda




Na sua canção havia cordas sem esperança: um som
longínquo de mulheres cegas (mães descalças no pre-
sídio transparente do sal).


Soava a morte e a orvalho; depois, tangia canas
negras: era o cantor das feridas. Sua memória ardia
no país do vento, na brancura dos sanatórios aban-
donados.




livro do frio
trad. de josé bento
assírio & alvim
1999