Neste país, neste tempo cuja angústia se desenha em lápides de
mercúrio,
vou estender os meus braços e penetrar na erva,
vou deslizar na espessura do azevinho para que tu me advirtas,
para que me convoques na humidade das tuas axilas.
Ainda há luz sobre os ramos abatidos e o meu valor descobre-se em
sílabas nas quais tu e os rostos actuam como grânulos silvestres,
como espermas excitados até penetrarem na bugia do som,
até submergirem o meu corpo em águas que não palpitam,
até cobrirem o meu rosto com as pomadas da majestade.
Não é uma glorificação, não é que tenha caído púrpura sobre os
meus ossos;
adiantar uma faca e retirá-la húmida de uma exsudação que
dignifica o esgrimista.
Agradeço a pobreza para que a pobreza não me maldiga e me
conceda anéis que me distingam de quando fui puro e legislava
na negação.
Cheiro os testemunhos do que é sujo sobre a terra e não me recon-
cílio mas amo o que ficou de nós.
Estou velho de mim mesmo, porém há estigmas. Chegaram os vi-
sitantes. Há formigas debaixo das chagas.
Sinto a fertilidade que se refugia na ira dos meus cabelos e ouço a
fuga das espécies que nos abandonaram.
Cessei a compaixão porque a compaixão me entregava a príncipes
cujas medalhas se afundavam no coração das minhas filhas.
Eu farei com os príncipes uma destilação que será nociva para eles
mas excitante e doce na povoação como é o sumo guardado
em vasilhas muito escuras.
Não recorrerei à verdade porque a verdade disse não e colocou
ácidos no meu corpo.
Que verdade existe no ventre das pombas?
A verdade está na língua ou no espaço dos espelhos?
A verdade é o que se responde às perguntas dos príncipes?
Qual é então a resposta às perguntas dos oleiros?
Se levantares uma túnica encontrarás um corpo mas não uma
pergunta:
para quê as palavras enxutas em cíngulos ou as construídas em
esquinas imóveis,
as convertidas em lâminas e, em seguida, despojadas e ávidas?
Ou melhor: alguma vez fui cínico como asfalto ou pelame?
Não se trata disso, apenas que o asfalto possuía a minha memória e
as minhas exclamações relatavam a perdição e a inimizade.
A nossa sorte é difícil reclusa na beladona e nos recipientes que
não devem ser abertos.
Sujo, é o mundo; porém respira. E tu entras no quarto como
um animal resplandecente.
Depois do conhecimento e do esquecimento que paixão me con-
cerne?
Não hei-de responder mas sim reunir-me com tudo o que está ofe-
recido nos átrios e na distribuição dos resíduos,
com tudo o que treme debaixo da noite.
antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2003
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