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29 setembro 2023

ana luísa amaral / a impossível sarça





 
Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer
 
Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita        abençoada
mas de mais e cristã
também castigo
 
Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras
 
que não chegam
– mas cegam
 
 
ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011
 


 


08 novembro 2015

ana luísa amaral / a cerimónia

  
Sagrei-os, aos meus filhos.
Fiz o que era esperado de mim,
mas a minha lembrança era do avesso,
para o futuro,
e estava toda nas rosas
que o tempo haveria de trazer,
em forma das guerras do meu país.
Dessas guerras me lembro,
mas nunca cheguei a ver a guerra
que a ambição e os sonhos lhes doaram.

Sagrei-os na minha mente,
antecipando o gesto de outra
que teria o meu nome.

Nesse dia, de manhã cedo,
era ainda escuro, e no quarto,
mesmo descerradas as cortinas,
quase não entrava a luz.
As aias ajudaram-me a vestir, e eu,
como sempre acontecia depois de acordar
e enquanto não chegavam as horas do dever,
lembrei-me do meu pai, do meu país,
dos seus campos muito verdes atravessados
por rebanhos, da chuva do meu país,
tão contínua como as minhas saudades.
Quando acabei as recordações
e o choro de silêncio,
chamei-os na minha mente.

A todos ofereci prendas.
Ao primeiro dei um ceptro
enfeitado de papel e de palavras,
ao segundo, uma espada
de aço brilhante,
ao terceiro, o gosto pelo mundo,
e ao último contei-lhe o caminho de
água verde e espuma alta
por onde eu tinha chegado;
mostrei-lhe o mar,
ao longo das muitas tardes
em que eu própria sonhava
com as margens que havia deixado
para trás.

Se pudesse sentar-me novamente
junto àquela janela,
a espada brilhante que dei a esse meu segundo filho
tê-la-ia transformado em arado,
ou em pequena lamparina,
porque, ao dar-lhe a espada,
dei-lhe também o resto de matar e de morrer.

Antes lhe tivesse dito vezes sem conta como é belo o mundo
e poder falar dentro dele.
Ou antes lhe tivesse mostrado só o mar,
como fiz com esse filho
junto de quem me cansava
das saudades da minha terra.

Uma prenda, porém, me é boa na memória:
a do papel e das palavras. Dispensaria o ceptro,
mas era ele que segurava palavras e papel.
Dessa prenda não me arrependo,
e quase me regozijo um pouco
por aquilo que fiz nessa manhã fria e escura
em que os chamei aos quatro
para junto da minha mente
e do meu coração.
Mas o que fizeram de mim,
naquele dia há tantos anos, quando, quase menina,
me ajudaram a subir para o bote
e depois para o navio
que me haveria de levar a uma terra que eu não conhecia,
a uma língua que não era a minha língua?

Onde ficaram as minhas tardes molhadas de chuva?
E a memória que de mim ficou,
porque não fala ela dos meus campos verdes
e das sombras dos rebanhos que os atravessavam?
Porque me nega essa memória
as rosas que, em futuro,
e ditas como guerra,
haveriam de dizimar tanta da minha gente?

Por que outra noite trocaram
o meu escuro?


ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011



07 novembro 2012

ana luísa amaral / comunicações


  

Entra por essa porta e vem sentar-te
aqui, como daquela vez em que te disse:
os vulcões são pirâmides de luz,
ou campos cheios de sol iluminado.

Terás morrido, sim, e tanto faz
se a sério, se a fingir, os outros o dirão.
Quanto a mim, és fenómeno de gelo
resistente a calor e primavera.

Entra então neste dia, que o sol
resiste ao brilho mais do que neste mês
lhe resistiu, e eu preciso de luz,
não se vê bem agora, é muito tarde,
as luzes nesta sala são baixas e cruéis.

Toma, uma cadeira boa (como a chama
que chega sinuosa): as formas são castanhas,
em perfeita esquadria, e as costas mais direitas
que um icebergue azul na vertical.

Talvez te diga: pirâmides de luz,
estes vulcões. Ou não.
Se eu não estiver, ou não estiveres em casa,
deixo um bilhete à porta, junto ao Hades,
na esperança de que o cão
o não destrua ─




ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011




21 fevereiro 2012

ana luísa amaral / outras vozes





Fechar os olhos e por dentro ecoar em passado.
Pensar «podia ter outra cor de pele, outra pelagem»
E o tempo virar-se do avesso, e entrar-se ali,
em vórtice, pelo tempo dentro.
Escolher.

Trazer cota de malha e de salitre,
ter chorado quando o porto ao longe se afastara,
milhares de milhas antes,
meses em sobressalto para trás.

As febres e tremuras durante a travessia,
 a água amarga, as noites
carregadas de estrelas,
 junto ao balanço do navio, um astrolábio.

Numa manhã de sol, do porto de vigia,
ver muito ao fundo, em doce oval,
a linha, quase tão longínqua como constelação.
Gritar «terra», gritar aos companheiros
ao fundo do navio, do fundo dos pulmões gritar,
e o bote depois, os remos largos,
a cama de areia e o arvoredo.

Ou trazer na cabeça penas coloridas,
conhecer só a fundo a areia branca
e o mar sem fundo, peixes pescados ao sabor dos dias,
uma língua a servir de subir a palmeiras,
a servir de caçar e contar histórias.

Moldar um arpão, começar por um osso
ou pedra e madeira,
entrelaçar o corpo da madeira, e o afiado da extremidade.
Contemplar devagar o resultado do trabalho
e da espera.
Ou a beleza. Escolher.

Trazer o fogo na mão, escondido pela pólvora,
fazer o fogo na orla da floresta.
Os risos das crianças, tocar a areia branca, tocar
a outra pele. Cruel,
o medo, vacilar entre a fome e o medo.
Ou não esco1her.

As penas coloridas sobre um elmo,
a cota de malha lançada pelo ar como uma seta,
os sons dos pássaros sobre a cabeça,
imitar os seus sons,
num lago de água doce limpar corpo e
pecados de imaginação,
sentir a noite dentro da noite,
a pele junto da pele,
imaginar um sítio sem idade.

Trocar o fogo escondido pelo fogo alerta,
o arpão pelo braço que se estende,
gritar «eis-me, vida»,
sem ouro ou pratas.
Com a prata moldar um anel
e uma bola de fogo a fingir,
e do fogo desperto fazer uma ponte a estender-se
à palmeira mais alta.

Esquecer-se do estandarte no navio,
depois partir da areia branca, nadar até ao navio,
as penas coloridas junto a si,
trazer de novo o estandarte e desmembrá-lo.
Fazer uma vela, enfeitá-la de penas,
derretidos que foram, entretanto,
sob a fogueira a1ta e várias noites,
elmo e cota de malha.

Serão eles a dar firmeza ao suporte da vela,
um barco novo habitado de peixes
brilhantes como estrelas.

Não eleger nem mar, nem horizonte.
E embarcar sem mapa até ao fim
do escuro.





ana luísa amaral
vozes
dom quixote
2011


23 agosto 2011

ana luísa amaral / revisitações



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Se eu como ele, o meu amor
tão anterior assim ao próprio amor,
o cajado e a pele por simbólica mão,
e o perfume que em mim,
então,

talvez eu te fizesse
sentir sem que o soubesse,
ao certo,
o chamamento à noite, falar
muito de noite e nela adormecer.
Longuíssima e final. Mas nova sempre.
Reencarnando os tempos e as datas.

De memórias tão curtas. E do fim
mais final do esquecimento.
Ter encontrado há pouco coisa dada
há quantos anos? Trinta?
«Não te esqueças de mim.»





ana luísa amaral
às vezes o paraíso
anos 90 e agora
quasi
2001
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