Há nomes que a nossa memória
recusa guardar sozinhos. Não é que não tenham em si mesmos sortilégio bastante
para atravessarem a morte desamparados, mas apenas porque a nossa imaginação lhes
deu um rosto de homem, numa idade em que, sem um rosto, nenhuma imagem, por
mais próxima ou menos degradada, se tornaria dócil e convivente. Junto dos
muros calcinados de Tróia, como poderemos escapar à feroz sedução da figura de
Aquiles? Até à roda dos meus vinte anos, o Porto e um «bom cidadão do lugar»
estavam tão religados no meu espírito, que eu amava a cidade só através de um
rosto – o de Domingos Peres das Eiras. Naquelas falas, que Fernão Lopes pôs na
sua boca, era a masculina música das palavras sem vileza que eu escutava, e o
seu rosto, de que nenhum de nós conhece as feições, uma das poucas imagens de
hombridade portuguesa, que eu juntava a outras, num tempo em que a juventude
não cessa de crescer. Quem não se recorda das palavras com que responde ao
enviado do Mestre de Avis? «Eu digo por mim e por todo este poboo que aqui
esta, que nos somos prestes com boa voomtade de servir o Meestre, nosso Senhor,
e fazermos todo o que ell mamdar por seu serviço e deffemssom do rregno. Ca já
ell seeria huű estranho
que nos nom conheçeriamos, e quamdo sse ell desposesse ataaes trabalhos e
perigoos por nos deffemder e emparar, nos o serviriamos com os corpos e averes;
moormente seer elle filho delRei dom Pedro como he…» Ainda hoje não consigo ler
estas linhas sem uma leve agitação nas águas que em mim parecem mais mortas, e,
ainda hoje, o que amo nesta cidade é essa música primeira que, alguns séculos
depois, ressoaria na prosa de Herculano. Domingos Peres das Eiras é o seu nome
– dizia eu aos amigos, quando visitei o Porto pela primeira vez, num entardecer
já distante, ali, no terreiro do Convento da Serra, fascinado por todo aquele
casario que se derramava às golfadas no Douro, as fachadas roídas pelos dias
húmidos e viscosos, onde uns restos de sol fulguravam nas janelas e nos
telhados, e as torres mais hirtas pareciam recuar na noite, que principiara a
cair. – Precisas de ler Camilo – responderam-me. Eu calei-me: não era forte em
Camilo. Pensava no espírito tão genuinamente popular desta terra, a que se encontrava
vinculada a mais alta das suas virtudes, a sua fronderie liberalista, que conquistou o privilégio de banir a
nobreza dos seus muros e não permitiu ao Tribunal do Santo Ofício celebrar aqui
mais que um só auto-de-fé. Que me importava a mim, naquele momento, o que
dissera Camilo do Porto? Poderia alguém, Camilo ou quem quer que fosse, negar
aquela beleza desgrenhada e áspera que tinha diante dos olhos? Só mesmo quem
fosse cego de nascença.
Fiquei então por cá dois ou três
dias. O Ernesto mostrou-me o mar da Foz, a Cantareira, o «cabedelo de oiro»,
que Raul Brandão diz ter conservado sempre na retina; com a Sophia passei uma
tarde nos jardins abandonados da Quinta do Campo Alegre, eu próprio abandonado
ao som da sua voz que se misturava com o jorrar das águas e o cheiro resinoso e
marítimo dos pinheiros; o Aires levou-me de corrida a ver, não o coração de D.
Pedro, como sugeria o motorista do táxi, mas o negrilho da Cordoaria, as tílias
do Palácio, as magnólias de S. Lázaro, o jacarandá e o cedro glauco do Largo de
Viriato; ao Eduardo fiquei a dever o Pousão do Palácio dos Carrancas e a Torre
dos Clérigos com versos de Pascoaes à mistura. Quanto a Camilo, só o li – e mal
é certo! – muitos anos depois: quando voltei ao Porto para ficar. Quem o nega?
Camilo viu do Porto a outra face, a do «burgo antigo com a sua dinastia de
comerciantes», que o Eça também lhe descobre, sem contudo lhe negar o que lhe
negou Camilo – a honradez: «O bom portuense se quiser ter foros de cidadão terá
de provar que o bisavô veio para a cidade com uma broa e meio presunto no saco,
escarranchado sobre dois costais de castanholas; que o avô teve balcão de
fazendas brancas e foi irmão do Santíssimo, irmão benemérito da Misericórdia, e
vinte anos a fio vestiu balandrau para pegar ao andor de Nossa Senhora. Item,
que o pai era, sem vergonha do mundo negociante de quatro portas, afora os
postigos por onde passava o contrabando; que sua mãe fora uma gorda e boa
mulher que remendava, passajava e sabia mesmo deitar uns fundilhos nas calças
do marçano e nunca na vida tivera pacta com letra redonda.» Era isto o Porto,
na juventude de Camilo? Se pensarmos no pendor caricatural e polémico do autor
de Amor de Perdição, nas circunstâncias em que tais palavras, e outras, e
outras, foram escritas (poucas vezes, como aqui, o verso de Pessoa «Compra-se a
glória com desgraça» terá tido tanta ressonância), poder-se-á objectar que a
imagem está um tanto ou quanto desfocada; ou se preferem: não seria o
provincianismo apelintrado, que se despeja inteiro na cidade da Virgem, afinal,
característica de todo o país? Do país…, do país…, que pensava Camilo?
Oiçam-no! «Quando se fará ao menos inodora esta cloaca de Portugal?» Azedo,
agastado, doente, «escouceado» numa terra que lhe não perdoava o sarcasmo, como
a Garrett não perdoou a ironia, Camilo ainda pôde, contudo, escrever a um
amigo: «Estou triste. Aproxima-se a hora de deixar para sempre esta terra,
onde, a par de muitos dissabores, experimentei alegrias instantâneas. Não é da
gente que tenho saudades. É de não sei quê…» São realmente muito tortos os
caminhos do amor.
Mais do que o sarcasmo de Camilo,
que disfarçava, ao fim e ao cabo, uma ternura por esta gente metida nos seus
«tamancos estóicos» (se assim não fora, como explicar que lhe tenha mordido e
remordido o coração?), surpreende o desprezo de António Nobre, nascido na Rua
de Santa Catarina, educado em colégios da Rua Formosa e da Rua de Cedofeita,
que guardará o seu amor para os subúrbios da cidade. O dandy das praias de Leça
tinha a sua opinião formada, e a sua opinião era a de Eça de Queirós, como
comunicará de Paris a Alberto de Oliveira: «Jesus! Que terra! Verdadeiramente
inabitável!» Pobre moço, coitado! Não tardaria em saber que não só o Porto, mas
todo o planeta, é inabitável. E acabará – oh, má sina do poeta! – os seus dias ali
na Foz a murmurar: «Que lindo que isto é!» Que descanse em paz. Ámen.
Aquele que foi o irmão maior de
Nobre – «Garrett da minha paixão…» – será com o Porto bem mais generoso. Para
lá do «grande aldeão» que lhe atirou à cara, teceu ao seu exemplar espírito de
liberdade o mais belo hino de que esta terra se pode orgulhar, além de ter
lavrado ainda, «em recta pronúncia e frase de brasão», um decreto em que todos
os seus títulos de nobreza lhe são confirmados por despacho régio, e de lhe
reformar as Armas, onde «lhe coloca, em escudo de honra, no meio, o coração de
D. Pedro…» Nem assim o «leal, paciente e bom povo» da sua cidade lhe perdoou os
versos de juventude – Garrett nunca será eleito deputado pelo Porto, como tanto
ambicionou. Em carta a Gomes Monteiro, datada de 23 de Junho de 1838,
escreverá: «Quanto a mim, sem falsa modéstia, nem escrúpulo algum, lhe digo que
trago atravessado na garganta, o não ser eleito pela minha terra…» Em 1840,
ainda se queixa ao mesmo amigo: «Eu sou do Porto, dói-me se não me elegerem os
meus patrícios porque em verdade mereço-lho.» Em verdade, merecia-o, e o Porto
perdeu uma ocasião única em demonstrar que não era «aldeão» ao mais civilizado
dos seus filhos.
A grande trindade poética que
lavra, nesta pedra escura, o perfil seguro do Porto – Fernão Lopes, Garrett e
Camilo – leva fatalmente à cidade uma pessoal visão de mundo, o seu génio
próprio. O Porto de Fernão Lopes é quase legendário: heróico e honrado; o de Camilo, grotesco e dramático; o de Garrett irónico,
pitoresco e sentimental. São três tempos (em duplo sentido: histórico e
musical) do seu carácter que, embora esquematicamente enunciados, nos permitem
algumas aproximações. A cidade viril de Fernão Lopes é ainda a de Herculano,
Ramalho, Jaime Cortesão e Miguel Torga; Raul Brandão, Pascoaes e Agustina
estão, de algum modo, na continuação do pessimismo de Camilo; de Garrett parte,
dessorada, perdido por completo o seu impenitente humor, toda uma toada que de
Júlio Dinis e António Nobre vem desaguar em tanta loa tacanhamente regionalista
e deprimente. Isto para falarmos apenas de quem mais se debruçou na alma destas
pedras, bem pouco transparente, como se vê.
Não sei como é que a palavra se insinuou:
convenhamos que vem pouco a propósito. A transparência é aqui nostalgia: até a
luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras
azulado, como o luar escasso que nesta noite de outono escorre dos telhados.
Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma clarabóias e
trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece
então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real. Para as bandas
de S. Lázaro, as ruas estão coalhadas de silêncio. Os passos de quem regressa
tarde a casa são raros, até os mais leves se ouvem à distância. Na noite alta,
o repuxo do jardim tem a nitidez de um coração muito jovem. Fora as magnólias,
não há árvore com folha. Os bancos estão desertos – os trolhazitos que por aqui
se aquecem ao sol, à hora do almoço, devem ter adormecido nalgum canto dessas
casas em vias de construção, que há um pouco por toda a parte. Dormem enrolados
no friínho que principia a rondar. Os cafés fecham as últimas portas. Saem os
retardatários um pouco aos bandos, quase todos jovens. Barulhentos, sem pressa,
encaminham-se para a Batalha. Um automóvel, rápido; outro; outro ainda. Um dos
moços assobia. As palavras da canção ecoam-me na cabeça:
If you’re going to San Francisco
be sure to wear some flowers in your
hair…
Param a olhar os cartazes de um cinema. São
realmente muito novos e, como poldrinhos amedrontados, juntam-se, empurram-se
uns aos outros, aos berros: – Não viste nada, pá, quem viu fui eu! – É um
adolescente de camisola alta, os cabelos à Shelley, as calças cingidas. Que teria
ele visto, que deixou de assobiar? A Mónica Vitti entrar no Hotel da Batalha? O
rei Édipo atravessar a praça pela mão de Antígona? Os Beatles empoleirados na
estátua de D. Pedro V? Ou o rosto que eu procurava na noite – o rosto sem
feições conhecidas de Domingos Peres das Eiras, escoando-se, solerte, pela Rua
de Cimo de Vila? Sigo-lhe a sombra, distanciado, e logo lhe perco o rasto.
Talvez tenha entrado numa daquelas casas estreitas e encardidas, de letreiros
pendurados no portal, anunciando «Dormidas» em letras vermelhas. De uma ou
outra janela exígua, uma luz bafienta escapa-se, a custo, entre as portadas
espessas. Inesperadamente, ouvem-se uns risos meio aloucados de rapariga, o
ranger de uma porta que hesitou em abrir-se , logo uma voz muito frágil, rasteirinha:
– Fica ainda um pouco, Miguel. – Eis a Rua Chã, a Rua Chã das Eiras, como
outrora se dizia. Aqui, dentro de portas, a mais triste das máscaras de Eros
fascinava ainda alguns solitários. Dois soldados olhavam as vidraças foscas. Um
velhote aproximou-se a cantarolar, pediu-me um cigarro. – Contente, hem?! –
Pois…, a vida são dois dias. – Ou menos, homem. E donde tira você a alegria? –
Olhe, do sol… – O velhote fitou-me. Não posso jurar que sorrisse, mas os seus
olhos brilhavam no escuro. Ainda me ocorreu perguntar-lhe: – E quando chove? E
olhe que chove muito no Porto! – Mas fiquei calado. Um homem que arranca
alegria do sol tem direito a ser respeitado. O velho sumiu-se por uma viela
abrindo em arco. A Sé via-se já de flanco. No empedrado do terreiro, os passos
crepitavam. Só o barulho das motorizadas conseguia atravessar tanto silêncio.
As colinas de Gaia estão cheias de luzes coadas por uma neblina rala que jamais
se extingue. Não há nenhuma cidade, assim, que subitamente não se torne
secreta. No rio, junto ao cais, distinguiam-se dois ou três barcos de carga, no
meio do tremor mercantil dos anúncios luminosos. No negrume dos telhados,
quebrado nas ruas mais próximas quase só pela brancura de uns lençóis a secar
às janelas, rompem as agulhas das igrejas – lancinantes. Quatro ou cinco
mimosas trepam miudinhas. É outono, creio que já o disse: a terra cheira bem.
No Carmo já deve haver violetas à venda. Preciso passar por lá amanhã: tenho a
quem enviar um ramo. A noite embaciara à medida que crescera, mas
vislumbrava-se ainda, lá ao fundo, uma torre esgalgada. O assobio recomeçou,
não sei onde, talvez na Rua Escura ou na de S. Sebastião. Mas agora era outra a
música que tinha dentro de mim:
«Para
a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim
alta,
assim
de névoa acompanhando o rio.»
eugénio de
andrade
daqui houve
nome portugal
prefácio
editorial inova
1968