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01 outubro 2024

eugénio de andrade / ainda esta poeira sobre o coração

 



 

 
Ainda esta poeira sobre o coração
queria que chovesse sobre os ulmeiros
sair limpo desses olhos
da luz que se demora a polir os seixos
 
A corrosiva música das vogais que te devora
o silêncio do muro
às vezes quase azul
o verão afinal onde o ar é mais duro
 
 
 
eugénio de andrade
limiar dos pássaros
limiar
1976




06 julho 2024

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
 
VII. Noite Transfigurada
 
Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
– chegaste,
nem eu sei de que horizontes.
 
Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
– ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.
 
Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
– ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 


13 junho 2024

eugénio de andrade / matéria solar

 
 
1
 
Podias ensinar à mão
outra arte,
essa de atravessar o vidro;
 
podias ensiná-la
a escavar a terra
em que sufocas sílaba a sílaba;
 
ou então a ser água,
onde de tanto olhá-las
as estrelas caíam.
 
 
 
eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 




20 janeiro 2024

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
VI

Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
o teu sorriso puro,
a tua graça animal.
 
Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
somente um bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.
 
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

27 novembro 2023

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
V
Nos teus dedos nasceram horizontes
E aves verdes vieram desvairadas
Beber neles julgando serem fontes.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000


31 julho 2023

eugénio de andrade / o copo de água

 



 

Devia ser nos começos do verão, os inumeráveis jacarandás de Jerez de la Frontera estavam em flor. Nos pátios da luxuosa vivenda onde me haviam instalado (que o Governo confiscara a um riquíssimo produtor de vinhos da região por fraude fiscal, agora destinada a hospedar gente da cultura), os repuxos erguiam os seus irisados fios de água para logo os deixar cair molemente na face doutras águas cativas em grandes taças de mármore, onde já flutuavam uma ou outra flor de jacarandá. Aquele rumor, a que se misturava às vezes algum canto de ave, parecia-me então a música do paraíso.
 
Durante aqueles dias, eu ficava por ali sentado toda a manhã com os meus papéis e um copo de água, que o caseiro me punha em cima da mesa, um copo de cristal com grinaldas de flores gravadas na parte superior, poucas coisas haverá tão bonitas como um copo de água fresca no verão, mesmo quando o vidro não tem a o brilho e a transparência do cristal. O caseiro, cuja voz vinda doutro pátio me prendia a atenção com cantares andaluzes muito ornamentados, também colocava cuidadosamente à noite, na minha mesa de cabeceira, um copo de água em tudo semelhante àquele de que falei. E como lhe referisse a beleza, ele ofereceu-me, ao partir, o que estava no meu quarto, como lembrança da minha passagem pela casa. É esse copo que, desde então – e já lá vão tantos anos! – tenho à cabeceira, e sempre com água fresca, como se o verão e a luz dos jacarandás durassem eternamente.
 
 
Foz do Douro, 24.3.2001
 
 
 
eugénio de andrade
inimigo rumor número 14
1º semestre 2003
livros cotovia
2003
 




23 junho 2023

eugénio de andrade / porto


antonio cruz, óleo sobre madeira

  

O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a insurreição do olhar.
 
O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, as lágrimas todas das crianças de S. Vítor correndo nos sulcos da sua melancolia.
 
O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, aproximando-me assim cada vez mais da restolhada matinal dos pardais, esses velhacos que, por muito que se afastem, regressam sempre à minha vida.
 
Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos da juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma pétala pouse aqui, por ser de cal.
 
 
 
eugénio de andrade
vertentes do olhar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




24 maio 2023

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 



 

V

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





27 dezembro 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
IV
Somos como árvores
só quando o desejo é morto.
Só então nos lembramos
que dezembro traz em si a primavera.
Só então, belos e despidos,
ficamos longamente à sua espera.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 




22 julho 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
III
Quando em silêncio passas entre as folhas,
uma ave renasce da sua morte
e agita as asas de repente;
tremem maduras todas as espigas
como se o próprio dia as inclinasse,
e gravemente, comedidas,
param as fontes a beber-te a face.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000




 

23 junho 2022

eugénio de andrade / a domingos peres das eiras, com umas violetas

 



 
Há nomes que a nossa memória recusa guardar sozinhos. Não é que não tenham em si mesmos sortilégio bastante para atravessarem a morte desamparados, mas apenas porque a nossa imaginação lhes deu um rosto de homem, numa idade em que, sem um rosto, nenhuma imagem, por mais próxima ou menos degradada, se tornaria dócil e convivente. Junto dos muros calcinados de Tróia, como poderemos escapar à feroz sedução da figura de Aquiles? Até à roda dos meus vinte anos, o Porto e um «bom cidadão do lugar» estavam tão religados no meu espírito, que eu amava a cidade só através de um rosto – o de Domingos Peres das Eiras. Naquelas falas, que Fernão Lopes pôs na sua boca, era a masculina música das palavras sem vileza que eu escutava, e o seu rosto, de que nenhum de nós conhece as feições, uma das poucas imagens de hombridade portuguesa, que eu juntava a outras, num tempo em que a juventude não cessa de crescer. Quem não se recorda das palavras com que responde ao enviado do Mestre de Avis? «Eu digo por mim e por todo este poboo que aqui esta, que nos somos prestes com boa voomtade de servir o Meestre, nosso Senhor, e fazermos todo o que ell mamdar por seu serviço e deffemssom do rregno. Ca já ell seeria huű estranho que nos nom conheçeriamos, e quamdo sse ell desposesse ataaes trabalhos e perigoos por nos deffemder e emparar, nos o serviriamos com os corpos e averes; moormente seer elle filho delRei dom Pedro como he…» Ainda hoje não consigo ler estas linhas sem uma leve agitação nas águas que em mim parecem mais mortas, e, ainda hoje, o que amo nesta cidade é essa música primeira que, alguns séculos depois, ressoaria na prosa de Herculano. Domingos Peres das Eiras é o seu nome – dizia eu aos amigos, quando visitei o Porto pela primeira vez, num entardecer já distante, ali, no terreiro do Convento da Serra, fascinado por todo aquele casario que se derramava às golfadas no Douro, as fachadas roídas pelos dias húmidos e viscosos, onde uns restos de sol fulguravam nas janelas e nos telhados, e as torres mais hirtas pareciam recuar na noite, que principiara a cair. – Precisas de ler Camilo – responderam-me. Eu calei-me: não era forte em Camilo. Pensava no espírito tão genuinamente popular desta terra, a que se encontrava vinculada a mais alta das suas virtudes, a sua fronderie liberalista, que conquistou o privilégio de banir a nobreza dos seus muros e não permitiu ao Tribunal do Santo Ofício celebrar aqui mais que um só auto-de-fé. Que me importava a mim, naquele momento, o que dissera Camilo do Porto? Poderia alguém, Camilo ou quem quer que fosse, negar aquela beleza desgrenhada e áspera que tinha diante dos olhos? Só mesmo quem fosse cego de nascença.

Fiquei então por cá dois ou três dias. O Ernesto mostrou-me o mar da Foz, a Cantareira, o «cabedelo de oiro», que Raul Brandão diz ter conservado sempre na retina; com a Sophia passei uma tarde nos jardins abandonados da Quinta do Campo Alegre, eu próprio abandonado ao som da sua voz que se misturava com o jorrar das águas e o cheiro resinoso e marítimo dos pinheiros; o Aires levou-me de corrida a ver, não o coração de D. Pedro, como sugeria o motorista do táxi, mas o negrilho da Cordoaria, as tílias do Palácio, as magnólias de S. Lázaro, o jacarandá e o cedro glauco do Largo de Viriato; ao Eduardo fiquei a dever o Pousão do Palácio dos Carrancas e a Torre dos Clérigos com versos de Pascoaes à mistura. Quanto a Camilo, só o li – e mal é certo! – muitos anos depois: quando voltei ao Porto para ficar. Quem o nega? Camilo viu do Porto a outra face, a do «burgo antigo com a sua dinastia de comerciantes», que o Eça também lhe descobre, sem contudo lhe negar o que lhe negou Camilo – a honradez: «O bom portuense se quiser ter foros de cidadão terá de provar que o bisavô veio para a cidade com uma broa e meio presunto no saco, escarranchado sobre dois costais de castanholas; que o avô teve balcão de fazendas brancas e foi irmão do Santíssimo, irmão benemérito da Misericórdia, e vinte anos a fio vestiu balandrau para pegar ao andor de Nossa Senhora. Item, que o pai era, sem vergonha do mundo negociante de quatro portas, afora os postigos por onde passava o contrabando; que sua mãe fora uma gorda e boa mulher que remendava, passajava e sabia mesmo deitar uns fundilhos nas calças do marçano e nunca na vida tivera pacta com letra redonda.» Era isto o Porto, na juventude de Camilo? Se pensarmos no pendor caricatural e polémico do autor de Amor de Perdição, nas circunstâncias em que tais palavras, e outras, e outras, foram escritas (poucas vezes, como aqui, o verso de Pessoa «Compra-se a glória com desgraça» terá tido tanta ressonância), poder-se-á objectar que a imagem está um tanto ou quanto desfocada; ou se preferem: não seria o provincianismo apelintrado, que se despeja inteiro na cidade da Virgem, afinal, característica de todo o país? Do país…, do país…, que pensava Camilo? Oiçam-no! «Quando se fará ao menos inodora esta cloaca de Portugal?» Azedo, agastado, doente, «escouceado» numa terra que lhe não perdoava o sarcasmo, como a Garrett não perdoou a ironia, Camilo ainda pôde, contudo, escrever a um amigo: «Estou triste. Aproxima-se a hora de deixar para sempre esta terra, onde, a par de muitos dissabores, experimentei alegrias instantâneas. Não é da gente que tenho saudades. É de não sei quê…» São realmente muito tortos os caminhos do amor.

Mais do que o sarcasmo de Camilo, que disfarçava, ao fim e ao cabo, uma ternura por esta gente metida nos seus «tamancos estóicos» (se assim não fora, como explicar que lhe tenha mordido e remordido o coração?), surpreende o desprezo de António Nobre, nascido na Rua de Santa Catarina, educado em colégios da Rua Formosa e da Rua de Cedofeita, que guardará o seu amor para os subúrbios da cidade. O dandy das praias de Leça tinha a sua opinião formada, e a sua opinião era a de Eça de Queirós, como comunicará de Paris a Alberto de Oliveira: «Jesus! Que terra! Verdadeiramente inabitável!» Pobre moço, coitado! Não tardaria em saber que não só o Porto, mas todo o planeta, é inabitável. E acabará – oh, má sina do poeta! – os seus dias ali na Foz a murmurar: «Que lindo que isto é!» Que descanse em paz. Ámen.

Aquele que foi o irmão maior de Nobre – «Garrett da minha paixão…» – será com o Porto bem mais generoso. Para lá do «grande aldeão» que lhe atirou à cara, teceu ao seu exemplar espírito de liberdade o mais belo hino de que esta terra se pode orgulhar, além de ter lavrado ainda, «em recta pronúncia e frase de brasão», um decreto em que todos os seus títulos de nobreza lhe são confirmados por despacho régio, e de lhe reformar as Armas, onde «lhe coloca, em escudo de honra, no meio, o coração de D. Pedro…» Nem assim o «leal, paciente e bom povo» da sua cidade lhe perdoou os versos de juventude – Garrett nunca será eleito deputado pelo Porto, como tanto ambicionou. Em carta a Gomes Monteiro, datada de 23 de Junho de 1838, escreverá: «Quanto a mim, sem falsa modéstia, nem escrúpulo algum, lhe digo que trago atravessado na garganta, o não ser eleito pela minha terra…» Em 1840, ainda se queixa ao mesmo amigo: «Eu sou do Porto, dói-me se não me elegerem os meus patrícios porque em verdade mereço-lho.» Em verdade, merecia-o, e o Porto perdeu uma ocasião única em demonstrar que não era «aldeão» ao mais civilizado dos seus filhos.
 
A grande trindade poética que lavra, nesta pedra escura, o perfil seguro do Porto – Fernão Lopes, Garrett e Camilo – leva fatalmente à cidade uma pessoal visão de mundo, o seu génio próprio. O Porto de Fernão Lopes é quase legendário: heróico e honrado; o de Camilo, grotesco e dramático; o de Garrett irónico, pitoresco e sentimental. São três tempos (em duplo sentido: histórico e musical) do seu carácter que, embora esquematicamente enunciados, nos permitem algumas aproximações. A cidade viril de Fernão Lopes é ainda a de Herculano, Ramalho, Jaime Cortesão e Miguel Torga; Raul Brandão, Pascoaes e Agustina estão, de algum modo, na continuação do pessimismo de Camilo; de Garrett parte, dessorada, perdido por completo o seu impenitente humor, toda uma toada que de Júlio Dinis e António Nobre vem desaguar em tanta loa tacanhamente regionalista e deprimente. Isto para falarmos apenas de quem mais se debruçou na alma destas pedras, bem pouco transparente, como se vê.
Não sei como é que a palavra se insinuou: convenhamos que vem pouco a propósito. A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma clarabóias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real. Para as bandas de S. Lázaro, as ruas estão coalhadas de silêncio. Os passos de quem regressa tarde a casa são raros, até os mais leves se ouvem à distância. Na noite alta, o repuxo do jardim tem a nitidez de um coração muito jovem. Fora as magnólias, não há árvore com folha. Os bancos estão desertos – os trolhazitos que por aqui se aquecem ao sol, à hora do almoço, devem ter adormecido nalgum canto dessas casas em vias de construção, que há um pouco por toda a parte. Dormem enrolados no friínho que principia a rondar. Os cafés fecham as últimas portas. Saem os retardatários um pouco aos bandos, quase todos jovens. Barulhentos, sem pressa, encaminham-se para a Batalha. Um automóvel, rápido; outro; outro ainda. Um dos moços assobia. As palavras da canção ecoam-me na cabeça:
 
          If you’re going to San Francisco
          be sure to wear some flowers in your hair…
 
Param a olhar os cartazes de um cinema. São realmente muito novos e, como poldrinhos amedrontados, juntam-se, empurram-se uns aos outros, aos berros: – Não viste nada, pá, quem viu fui eu! – É um adolescente de camisola alta, os cabelos à Shelley, as calças cingidas. Que teria ele visto, que deixou de assobiar? A Mónica Vitti entrar no Hotel da Batalha? O rei Édipo atravessar a praça pela mão de Antígona? Os Beatles empoleirados na estátua de D. Pedro V? Ou o rosto que eu procurava na noite – o rosto sem feições conhecidas de Domingos Peres das Eiras, escoando-se, solerte, pela Rua de Cimo de Vila? Sigo-lhe a sombra, distanciado, e logo lhe perco o rasto. Talvez tenha entrado numa daquelas casas estreitas e encardidas, de letreiros pendurados no portal, anunciando «Dormidas» em letras vermelhas. De uma ou outra janela exígua, uma luz bafienta escapa-se, a custo, entre as portadas espessas. Inesperadamente, ouvem-se uns risos meio aloucados de rapariga, o ranger de uma porta que hesitou em abrir-se , logo uma voz muito frágil, rasteirinha: – Fica ainda um pouco, Miguel. – Eis a Rua Chã, a Rua Chã das Eiras, como outrora se dizia. Aqui, dentro de portas, a mais triste das máscaras de Eros fascinava ainda alguns solitários. Dois soldados olhavam as vidraças foscas. Um velhote aproximou-se a cantarolar, pediu-me um cigarro. – Contente, hem?! – Pois…, a vida são dois dias. – Ou menos, homem. E donde tira você a alegria? – Olhe, do sol… – O velhote fitou-me. Não posso jurar que sorrisse, mas os seus olhos brilhavam no escuro. Ainda me ocorreu perguntar-lhe: – E quando chove? E olhe que chove muito no Porto! – Mas fiquei calado. Um homem que arranca alegria do sol tem direito a ser respeitado. O velho sumiu-se por uma viela abrindo em arco. A Sé via-se já de flanco. No empedrado do terreiro, os passos crepitavam. Só o barulho das motorizadas conseguia atravessar tanto silêncio. As colinas de Gaia estão cheias de luzes coadas por uma neblina rala que jamais se extingue. Não há nenhuma cidade, assim, que subitamente não se torne secreta. No rio, junto ao cais, distinguiam-se dois ou três barcos de carga, no meio do tremor mercantil dos anúncios luminosos. No negrume dos telhados, quebrado nas ruas mais próximas quase só pela brancura de uns lençóis a secar às janelas, rompem as agulhas das igrejas – lancinantes. Quatro ou cinco mimosas trepam miudinhas. É outono, creio que já o disse: a terra cheira bem. No Carmo já deve haver violetas à venda. Preciso passar por lá amanhã: tenho a quem enviar um ramo. A noite embaciara à medida que crescera, mas vislumbrava-se ainda, lá ao fundo, uma torre esgalgada. O assobio recomeçou, não sei onde, talvez na Rua Escura ou na de S. Sebastião. Mas agora era outra a música que tinha dentro de mim:
 
          «Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
          assim alta,
          assim de névoa acompanhando o rio.»
 
 
 
eugénio de andrade
daqui houve nome portugal
prefácio
editorial inova
1968




 


20 maio 2022

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

  
 
I
Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, e dos choupos,
carregados de sombra e rasos de água.
 
Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
– Ó mãos da minha alma,
Flores abertas dos meus segredos.
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000



17 abril 2022

eugénio de andrade / mar sobre a boca

 
 
 
1.
O corpo sabe.
O corpo não esqueceu ainda
a direcção do sol:
fará a casa perto do mar,
fiel ao quase adolescente
coração da água.
As mãos acesas – altas, altas.
 
2.
O mar – sempre que toco
um corpo é o mar que sinto
onda a onda
contra a palma da mão.
Vésper está agora
tão próxima que já não posso
perder-me naquela infatigável
ondulação.
 
3.
Vinha do mar.
A sua boca ardia.
Só casualmente passou por aqui.
Como o tordo branco. E a cotovia.
 
4.
Vem das ilhas ou dum verso de Homero.
Como dormir, depois de ter ouvido
o mar o mar o mar na sua boca?
 
 
 
eugénio de andrade
hífen 1 out. 87/ mar. 88
cadernos semestrais de poesia
1987



 
 

10 novembro 2021

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 
 
29
 
Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.
 
Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.
 
Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
Fundo, como quem bebe a madrugada.
 
 
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos (1945-1948)
poesia
editorial inova
1971

 




21 junho 2021

eugénio de andrade / matéria solar

 
 
49
 
Sei onde o trigo ilumina a boca.
Invoco esta razão para me cobrir
com o mais frágil manto do ar.
 
O sono é assim, permite ao corpo
este abandono, ser no seio da terra
essa alegria só prometida à água.
 
Digo que estive aqui, e vou agora
a caminho doutro sol mais branco.
 
  
 
eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

25 abril 2021

eugénio de andrade / matéria solar

 
 
23
 
Este país é um corpo exasperado,
a luz da névoa rente ao peito,
a febre alta à roda da cintura.
 
O país de que te falo é o meu,
não tenho outro onde acender o lume
ou colher contigo o roxo das manhãs.
 
Não tenho outro, nem isso importa,
este chega e sobra para repartir
com os corvos – somos amigos.
 
 
 
 
eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






 

19 março 2021

eugénio de andrade / de passagem

 
 
Vinham ao fim do dia.
Talvez chamados pelo brilho
dos dentes, ou das unhas,
ou dos vidros.
 
Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados.
 
Chegavam, bebiam
a púrpura dos espelhos
e partiam.
Sem declinar o nome.
 
 
 
eugénio de andrade
obscuro domínio
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





 

11 setembro 2020

eugénio de andrade / até amanhã



Sei agora como nasceu a alegria,
como nasce o vento entre barcos de papel,
como nasce a água ou o amor
quando a juventude não é uma lágrima.

É primeiro só um rumor de espuma
à roda do corpo que desperta,
sílaba espessa, beijo acumulado,
amanhecer de pássaros no sangue.

É subitamente um grito,
um grito apertado nos dentes,
galope de cavalos num horizonte
onde o mar é diurno e sem palavras.

Falei de tudo quanto amei.
De coisas que te dou
para que tu as ames comigo:
a juventude, o vento e as areias.



eugénio de andrade
até amanhã
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







24 junho 2020

eugénio de andrade / canção



Tinha um cravo no meu balcão:
     veio um rapaz e pediu-mo
     – mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão:
     veio um rapaz e pediu-mo
     – mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
     só não dei o coração:
     mas se o rapaz mo pedir
     – mãe, dou-lho ou não?



eugénio de andrade
primeiros poemas
poesia
fundação eugénio de andrade
2000






31 maio 2020

eugénio de andrade / rosa de areia



Enquanto
um calor mole nos tira a roupa
e mesmo nus sobre a cama
os corpos continuam a pedir água
em vez de outro corpo,
penso no tempo em que o suor
e a saliva e o odor e o esperma
faziam dessa agonia
a alegria
a que chamávamos amor.


eugénio de andrade
rente ao dizer
poesia
fundação eugénio de andrade
2000