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24 junho 2023

vasco graça moura / sobre a minha cidade


antonio cruz, sem título 1941

 

 
sobre a minha cidade, falei-te ontem mostrei-te
as esquinas do tempo, a imagem de fachadas
que ainda conheci, de outras que
eu próprio ignorava; sobre
 
a minha cidade e suas pedras, seus espaços
de árvores graves; e o que foi arrasado,
ou está a desfazer-se; as manchas do presente, a
poluição dos homens; e o que foi
 
violentamente arrancado por negócios sucessivos,
erros, brutalidades: o que era e o que foi
o que é dentro de mim o seu obscuro,
imaginário ser: costumes e conflitos,
 
maneiras de falar, a gente
e a confusão das ruas, as casas do barredo;
sobre a minha cidade achei que tu
tiveste gratidão, a viste.
 
que percorreste as pontes que da minha
cidade a ti me trazem, entre
gaivotas alastrando e músicas diferentes,
e foste nascer nela.
 
 
 
vasco graça moura
os rostos comunicantes
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007
 


23 junho 2023

eugénio de andrade / porto


antonio cruz, óleo sobre madeira

  

O Porto é só uma certa maneira de me refugiar na tarde, forrar-me de silêncio e procurar trazer à tona algumas palavras, sem outro fito que não seja o de opor ao corpo espesso destes muros a insurreição do olhar.
 
O Porto é só esta atenção empenhada em escutar os passos dos velhos, que a certas horas atravessam a rua para passarem os dias no café em frente, os olhos vazios, as lágrimas todas das crianças de S. Vítor correndo nos sulcos da sua melancolia.
 
O Porto é só a pequena praça onde há tantos anos aprendo metodicamente a ser árvore, aproximando-me assim cada vez mais da restolhada matinal dos pardais, esses velhacos que, por muito que se afastem, regressam sempre à minha vida.
 
Desentendido da cidade, olho na palma da mão os resíduos da juventude, e dessa paixão sem regra deixarei que uma pétala pouse aqui, por ser de cal.
 
 
 
eugénio de andrade
vertentes do olhar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000