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21 outubro 2023

manuel cintra / rotação

 




 

 
I
 
 
                                                    (e vou-me embora com ar de borboleta triste,
                                                     depois da chuva, e volto mais tarde de peito
                                                     cheio de rosas.)
 
 
 
E olho para o espelho e faço a barba e coloco em cima do bordo do lava-loiça um pouco do cansaço e abro o peito à noite e tu passas de uma sala para a outra e mostras, em certos gestos, que te vais deitar, e arranco ao fechar de porta da cozinha um pouco da dor às costas, e estou feito cerimónia como um braço aberto que te tape a barriga e acabe enterrado no calor das nádegas, e vou buscar um copo de água, e arranco ao descer da persiana uma dentada no tempo, e chamo sobre nós a calma do céu, e deito-me ao teu lado também desta vez é de noite é de poucas horas é tão longa.
 
 
 
manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981
 


04 setembro 2021

manuel cintra / com o verão

 

                                                                                                                                                                                                                        (com o verão)
 


 
Ali mesmo onde o salitre ano após ano vai beijando o estuque em desejos redondos de espuma seca. Ali onde num segundo entre parêntesis, dois lábios mais quentes do que o ar ambiente se tocam quase sem som, num até logo que podia ser escondido em avenidas de pétalas e fica feito receptáculo, desventrando a rua.
 
A rua, essa carne sulcada de rodas e vestida de janelas, que atravessa por ano tantas estações como qualquer mulher, articula-se rodeando os meus pés de olhares cúmplice, cheios de sola e de varão.
 
Beber o brilho súbito do beijo dos outros. Sentir a ausência de gosto na ausência do beijo que os outros não se dão. Receber a alegria que os tons de luz procuram em cada puxador de porta. A forma opaca e dura de tantas mãos segurando chávenas de café escuro atrás de vidros atrás de horas dentro de mãos.
 
Ia-se dizer uma piada, sente-se o eco, não se chega a rir.
 
(vejo de longe o teu olho pintado. As tuas palavras que entram na tarde, trocam mãos, constroem minutos com casitas de som e outras de silêncio. Depois tocas objectos com ondas nas sobrancelhas e fogem-te os olhos para a luz. Nos teus passos certos, alguma coisa que treme e tornas a segurar, como um volante pequeno.)
 
Enquanto vou contando uma história diferente em cada rosa vermelha. Adquirindo um tanto de optimismo, um tanto de azedume, em doses pouco lógicas, sempre antes de uma rosa e depois de outra.
 
Na música, os meus olhos dão corridas de braços abertos enchendo o chão de passos de todos os formatos, pernas sustendo corpos que seguram olhos lançam corridas e depois se esquecem de lançar. Um riso tímido corta o ar de queima-me. Crianças de pouco tamanho organizam explorações a canteiros e tocam e retocam a terra juntando palmas de mãos.
 
 



manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981





17 dezembro 2020

manuel cintra / os primeiros passos…

  
 
   Os primeiros passos são mais ou menos perros.
 
 
   Devagar, descola-se a noite do peito.
   Nevoeiro, em pedaços, entorpece os ouvidos.
   Frio, às baforadas, morde nuvens nos olhos.
   E os ruídos que contorcem a manhã
   não são forçosamente o único fechar de porta
   com torcer
 
 
(e pergunto à larva se dói tecer o casulo, à carne da
borboleta se a morte próxima responde ao recente dei
tar de ovos. Tento dosear marés de lembrança e de
esquecimento.)
 
 
   O que eu quero é ser como o sol,
   que, segundo consta, nunca arrefeceu.
 
 
(e a coluna vertebral do tempo
                                            osso a osso a oiço
 
 
 
manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981






18 agosto 2019

manuel cintra / tenho no peito da memória



                                                                                                                                                             à Catarina






Tenho no peito da memória os vincos do levantar, a voz dela, os pés pequenos a não querer entrar nos sapatos do dia. Depois imagino-te, mão grande naquela mão pequena, a tentar que prometes. E ela finge que sorri, tem uma dor escondida que te vás embora. Até logo mãe, ou então menos,


um beijo rijo de silêncio no ar injusto da manhã




manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981







20 novembro 2018

manuel cintra / dobrou-se sobre ela puxou-lhe fogo




Dobrou-se sobre ela puxou-lhe fogo
Escancarou-lhe os olhos puxou-lhe fogo
Cerziu-se-lhe no peito puxou-lhe fogo
Tirou-lhe pó de cima puxou-lhe fogo
Sentiu-se tão pesado puxou-lhe fogo
Cobriu-a de ar; destapou-lhe a carne; mordeu.

Era fim de tarde era depressa era comprido
Verteu palavras tenras até já não ter voz
Chorou, soletrou-lhe o corpo membro a membro
E foi no soalho a solidão de a desventrar
Tremeu tremeu puxou-lhe fogo


E ela ardeu



manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981








27 março 2018

manuel cintra / levas-me inteiro


  


                Levas-me inteiro
                Mais longe nos tecidos
                Algures a germinar
                Um ovo
                Em estado de promessa.

Choro, talvez
Chore ainda mas ainda mais talvez

Lavas-me, escorro
De ti para as ruas ainda mais de ti

                Seria simples imaginar
                Uma das tuas mãos
                Com os ossos da minha.
                A  outra, a carne.

Mas eu não gosto de coisas simples.



manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981