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03 março 2024

antónio ramos rosa / sujei o teu nome




 

Sujei o teu nome
para me libertar de ti
o sujo foi sombra
teu nome esqueci-o
 
O sujo era ferida
e eu falso cantava
Não reconheci a minha voz
Ai que deserta liberdade
 
Preso de novo
que rede tamanha
de laços e vozes
Um eco talvez
um eco incessante
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




 

17 novembro 2023

antónio ramos rosa / nunca ninguém escreveu o primeiro poema

 




 
Nunca ninguém escreveu o primeiro poema
que está sempre latente em cada verso
e nunca acontece e não acontecendo
gera o poema que se escreve
 
Esse primeiro poema virtual é uma sombra
que vem sempre por trás e vai adiante
e o seu tremor é o ritmo das sílabas escritas
e é um sangue escuro que obscurece e vivifica o sentido
 
O poeta tem sempre a esperança de escrever um dia
esse primeiro poema e porque não o escreve
sente que nunca escreveu nenhum poema
e vive de estar sempre à beira do escrever
 
Mais do que todos os poemas já escritos
é esse estremecimento de uma sombra que deslumbra
porque tem em si o fogo inicial do gérmen
em permanente iminência sob as palavras que o procuram
 
 
 
antónio ramos rosa
hífen 8 janeiro / 1994
cadernos semestrais de poesia
artes poéticas
1994



01 julho 2022

antónio ramos rosa / aqui onde o sol se acende em carne

 
 
Aqui onde o sol se acende em carne,
onde a casa é um nome de mar,
e os frutos e os espelhos
amadurecem o corpo solidário:
É Verão.
 
Aqui tu és
lenta verdade no sossego do sangue:
circulação de nomes e de peixes.
 
Aqui, à fome dos nomes e dos seres,
respondes, corpo do mar, coluna real
e teus acidentes se cumprem como ondas.
Aqui te palpo, vela, aqui te vejo, pomo,
formas meus braços, se te enleio,
desato simplesmente os teus anéis,
bebo-te sem te extinguir e sem me esperares.
Amanhã serás tu, sendo já hoje.
 
Recebendo-te como outra, outra nasces
e a ti mesma te igualas, porque és mar.
teu corpo denso se aproxima, ora se afasta.
Há um perfume de uma noite inextinguível
nas tuas coxas claras.
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985



02 setembro 2021

antónio ramos rosa / como se fora aqui

 
 
Como se fora aqui aqui começo
Aqui procuro o gesto de encontrar
onde a procura é febre jovem pressa
a cidade se inclina por um tornozelo lúcido
rodopia a palavra que num lance se espera
o pulso livre martela a luz das têmporas
uma lâmina de água ondula no silêncio
a cidade transpira num corpo desnudado
por uma fenda vivíssima o espaço se ilumina
o poema atravessa o vidro do instante
 
Aqui encontro a chama adormecida errante
 
Como se fora aqui aqui começo
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





18 dezembro 2020

antónio ramos rosa / mas agora…

 
 
Mas agora estou no intervalo em que
toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre.
Escrevo para não viver sem espaço,
para que o corpo não morra na sombra fria.
 
Sou a pobreza ilimitada de uma página.
Sou um campo abandonado. A margem
sem respiração.
 
Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe
a ciência certa da navegação no espaço,
o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia,
o corpo pode vencer a fria sombra do dia.
 
Todas as palavras se iluminam
ao lume certo do corpo que se despe,
todas as palavras ficam nuas
na tua sombra ardente.
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





05 abril 2020

antónio ramos rosa / eu queria encontrar aqui ainda a terra



Eu queria encontrar aqui ainda a terra
e a chama
e a limpidez da simplicidade única
e reunir-me no silêncio a uma boca silenciosa

Eu desejava o centro e a festa na folhagem
mas estou submerso ou não afundo-me ou levanto-me
Caminho através da não-verdade
Esta palavra ou aquela uma palavra a mais
Eu não soube escutar-te eu oiço-te eu pergunto
quem unirá o silêncio da terra submersa
ao incêndio da festa à boca incompleta?


antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985






26 maio 2019

antónio ramos rosa / nesse momento a sombra foi uma ferida



Nesse momento a sombra foi uma ferida
e o silêncio foi na sombra o esplendor
porque o nome que disseste era o domínio
que só no silêncio encontraria a face

Nada se abria rasgou-se lentamente
e alguém foi em mim não sei quem fui eu
e uma palavra a mais no intervalo surgiu

Não sei se se perdeu se vai perder-se
ou se para sempre o nome em nós sofria
se fomos pelo nome o lábio do silêncio



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





18 outubro 2018

antónio ramos rosa / este homem que esperou




Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar a direcção
ao seu próprio destino

Este homem que esperou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985






29 junho 2018

antónio ramos rosa / da casa branca




*
Da casa branca
vê-se o mar
o fulvo dorso
da praia
nu

mulher de areia
deitada e panda
na frescura azul

                *
Uma vela branca
de minúcia fresca

dá ao olhar a brisa
dá ao silêncio o mar

                *
A mulher dorme
viva
na espuma
do silêncio



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985







30 abril 2018

antónio ramos rosa / a sede do silêncio





                A sede do silêncio é um fruto do silêncio. A sede da palavra nasce da palavra que nasce do silêncio. A necessidade do silêncio é uma necessidade da palavra que (não) se perde na palavra. Distância, deserto, de árvore em árvore, a eterna sede, a sede do eterno, da frugal transparência do efémero. Terra, toda a distância da terra em cada sílaba, em cada vocábulo sem água. A página é deserto e caminho errante, obstinado. O horizonte do deserto anula a miragem, nega o imaginário. A sede da página é sede da ausência e sede da palavra do horizonte. A ausência é a segunda dimensão do dia, o outro lábio da terra, a verdadeira voz do vocábulo.




antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001








19 março 2018

antónio ramos rosa / escrevo sobre um muro



J'ecris sur un mur au fond du noir

Guillevic



Escrevo e as portas não se abrem.
Os rios existem, e o mar da rua
existe. Escrevo. E o que espero?
Escrevo em apagados muros, na branca
superfície do muro. Escrevo.


São palavras, palavras. São
palavras.
Não respiram. Não falam.
São desertas.
Não rodam, não batem nos meus pulsos.
E escrevo. Como se esperasse.


Como. Se desertas abrissem.
Para. Para.
Uma vida outra aberta.
Esta e mais nenhuma, a que só temos
sem nunca tê-la, a que seria vida
o que é, e nós sem ela.


Escrevo no muro palavras,
para respirar, quando não posso,
quando o desejo de viver se tornou ténue,
que não sinto senão na ténue página,
na brancura rara que me tenta,
na água sem jardins ao rés da página
ó sede à beira de nascer, ó água!


Escrevo palavras neste muro. Um muro.
Umas palavras. O mar da rua existe.
As portas não se abrem. E não espero.
Escrevo sobre o muro. Umas palavras.
São as palavras que escrevem esse muro.
São as palavras que escrevem esse muro.
O muro existe. Resiste É bem um muro.
As palavras saltam além do muro.



antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001







12 dezembro 2017

antónio ramos rosa / no silêncio da terra




No silêncio da terra. Onde ser é estar.
A sombra se inclina.
Habito dentro da grande pedra de água e sol.
Respiro sem o saber, respiro a terra.
Um intervalo de suavidade ardente e longa.
Sem adormecer no sono verde.
Afundo-me, sereno,
flor ou folha sobre folha abrindo-se,
respirando-me, flectindo-me
no interior aberto.
Não sei se principio.
Um rosto se desfaz, um sabor ao fundo
da água ou da terra,
o fogo único consumindo em ar.

Eis o lugar em que o centro se abre
ou a lisa permanência clara,
abandono igual ao puro ombro
em que nada se diz
e no silêncio se une a boca ao espaço.

Pedra harmoniosa
do abrigo simples,
lúcido, unido, silencioso umbigo
do ar.

o teu corpo
renasce
à flor da terra.
Tudo principia.



antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001





07 janeiro 2017

antónio ramos rosa / estou vivo e escrevo sol


ao Ruy Belo


Escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no ato de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maravilha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde


antónio ramos rosa
vagabundagem na poesia de antónio ramos rosa
seguido de uma antologia
casimiro de brito
quasi
2001


26 dezembro 2016

antónio ramos rosa / não sei se respondo ou se pergunto



Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.


antónio ramos rosa








16 julho 2016

antónio ramos rosa / o grande nó obscuro de existência



O grande nó obscuro de existência
será dilacerado
pelo derradeiro gume do destino
e não iluminado.
Tudo o que existe vacila lentamente
em torno da indiferença
da luz à sombra dos ciprestes.


antónio ramos rosa
horizonte a ocidente
relâmpago
revista de  poesia nº. 15
outubro de 2004



29 abril 2016

antónio ramos rosa / a paixão do ar



Olhar sem caminho em cheio
a tranquila onda muscular
paralela à mão aberta e livre

Uma escrita a nascer dos alvos flancos
a paixão do ar como uma chama

Paixão que une a terra cheia ao mar
o olhar respira em todo o corpo igual
o corpo eleva-se sobre a montanha fácil

O fogo flexível.


antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985



08 outubro 2015

antónio ramos rosa / quem bate a uma porta de folhas na noite



Quem bate a uma porta de folhas na noite
uma porta de folhas na noite
Quem toca a dura casca do teu nome na noite
a uma porta de folhas


Uma porta de folhas uma porta
Quem bate a essa porta de folhas
Quem bate a essa porta de folhas na noite
Quem bate a essa porta sou eu


antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985




01 outubro 2015

antónio ramos rosa / a respiração do mar



Errantes as palavras, as janelas,
respiração à flor do mar no côncavo da arca,
ombro imenso que não encerra, todo o espaço
como um só corpo onde o vento começa.



antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990



04 janeiro 2015

antónio ramos rosa / para além dos signos



Escrever agora é dispersar os reflexos,
abrir as portas de pedra e repousar no ar.
Ajoelhado junto de um barco ou de uma jarra,
um deus respira e é um puro vazio.
Para além dos signos e no início deles
um sorriso, um fulgor das coisas confiantes.
E nos muros e nos dedos, uma areia
que das nuvens descesse e na distância
a forma de um abraço amante, o sonho do outro.



antónio ramos rosa
acordes
quetzal editores
1990





05 novembro 2014

antónio ramos rosa / na grande confusão



Na grande confusão
deste medo 
deste não querer saber 
na falta de coragem 
ou na coragem de 
me perder me afundar 
perto de ti tão longe 
tão nu
tão evidente 
tão pobre como tu 
oh diz-me quem sou eu 
quem és tu?
  


antónio ramos rosa