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23 agosto 2023

carlos de oliveira / sesta

 
 
Dentro do bosque
os passos dum caçador.
Dentro da sombra
a cobra do calor.
 
E dentro do meu sono
outro sono maior.
 
Estalando as folhas secas
vai a cobra invisível.
Nas mãos do caçador
ainda a vida é plausível.
 
Só dentro do meu sono
toda a morte é possível.
 
 
 
carlos de oliveira
colheita perdida
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982





28 abril 2023

carlos de oliveira / instante

 
 
Esta coluna
de sílabas mais firmes,
esta chama
no vértice das dunas
fulgurando
apenas um momento,
este equilíbrio
tão perto da beleza,
este poema
anterior
ao vento.
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




25 novembro 2022

carlos de oliveira / look back in anger

 



 
Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos cintilantes, o luar trazido por um golpe d evento às trincheiras da Flandres, mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital da rectaguarda, ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
 
Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
 
As imagens latentes, penso eu, porque sou o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se entrega um filme aos sais de prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.
 
 

carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1982




25 abril 2022

carlos de oliveira / coração

 


 

1
 
Tosca e rude poesia,
meus versos plebeus
são corações fechados,
trágico peso de palavras
como um descer da noite
aos descampados.
 
Ó noite ocidental,
que outra voz nos consente
a solidão?
Cingidos de desprezo,
somos os humilhados
cristos desta paixão.
 
E quanto mais nos gelar a frialdade
dos teus inúteis astros,
mortos de marfim,
mais e mais, génio do povo,
tu cantarás em mim.
 
 
2
 
Olhos do povo que cismais chorando,
olhos turvos de outrora,
chegai-vos ao calor que irá secando
o coração – da chuva que em nós chora.
 
 
3
 
Quem soprou na gândara
a última chama?
Se quiseres, ó morte,
abro-te os lençóis
e dou-te a minha cama.
 
Vai meu coração
pelas aldeias moiras
onde pena e erra,
peregrinação
ao tojo da terra.
 
Caminheiro cansado
sem nenhum bordão,
onde houver um sonho
para ser sonhado
está meu coração.
 
 
4
 
Canta na noite, sentimento da terra,
onde morreste, flor estranha?
Há tanto que chove e nós sem lenha,
Sem paz e sem guerra.
 
Há tanto. E eu sei lá bem
se inda persistes,
minha incólume esperança.
Vão-me doendo os olhos já de serem tristes.
 
Vão-me doendo,
que mos turva de sombra o desespero.
E escrevendo à luz débil me pergunto
se é a morte ou a manhã que espero.
 
 
 
carlos de oliveira
mãe pobre
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998





02 janeiro 2022

carlos de oliveira / o fundo das águas

 
 
Adensam-se as formas vagas, surdindo tumultuariamente de não sei quê desesperado ainda como o mundo dos princípios; adensam-se os elementos, os vendavais, a aspereza do ferro, do cálcio, da lava, a fereza biológica dum fundo que não tem outro destino senão explodir.
 
Estou a sentir na sombra: um rumor de larvas e sementes, o amor de que sou capaz pela vida e pelos outros; o esboçar dalguma flor negra acordando, um ritmo de versos; caprichos da botânica  ou desvios da alma; o vento da harmonia submerso entre caules sanguíneos e rugosos; a breve tempestade das conchas e dos peixes, a grande solidariedade que vos devo.
 
O que me espanta é a aceitação de cada dia. e desta angústia vou tecendo as palavras, desta água salgada e doce como as lágrimas e o sangue. Tecendo escuramente as palavras.
 
 
 
carlos de oliveira
terra de harmonia
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




20 julho 2021

carlos de oliveira / edgar allan poe

 
 
O inverno em Boston foi breve. Ele bebia. Sílabas abriam-se uma a uma pelos cantos do quarto. Gotas de álcool. Quem se lembra da chuva caída no seu nome?
 
Folheou toda a noite os livros ancestrais e encontrou qualquer coisa, ninguém sabe o quê, talvez o retrato de Annabel Lee. Esboçou-o na vidraça carregada de sombra e o quarto amanheceu.
 
«Mas isso pouco vale (diz a magia negra), o filtro apenas decompôs mais cedo o horror em luz, não alterou a solidão dos dias, que a noite separa uns dos outros para sempre».
 
 
 
 
carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998




11 abril 2021

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
10
«Lá em cima, terra,
parecias em torpor
adormecida
no sonho espesso do teu sono.
 
E quantas noites
com luar a murmurar à nossa porta
pensámos nós que te fingias morta
só para não acordares com a tua vida
os filhos que criaste
e de novo chamaste
ao teu silêncio.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




20 dezembro 2020

carlos de oliveira / descida aos infernos

 
 
6
Sempre para o centro da terra
onde os metais com sede
sonham devoradoramente
o sangue dos mineiros.
 
Queimando já a pele e os cabelos
nas combustões do enxofre, do granito,
desço alucinado
com pedra a ferver nos pulmões
e pedra em chamas a acender-me os gritos.
 
Como unhas de mercúrio fulgente
crescem-me dos olhos e dos dedos
nunca sonhados medos, nunca tanto
fulgor de lágrimas doentes.
 
 
 
carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001




20 agosto 2020

carlos de oliveira / descida aos infernos


5
(E descendo
é como se descesse dentro de mim
nas cobardias-detritos das águas,
nos heroísmos-resíduos das fráguas.

E seja por que for
no suor anónimo das mágoas)



carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001







12 maio 2020

carlos de oliveira / infância



II

Tão pequenas
a infância, a terra.
Com tão pouco
mistério.

Chamo às estrelas
rosas.

E a terra, a infância,
crescem
no seu jardim
aéreo.

  


carlos de oliveira
turismo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998






06 março 2020

carlos de oliveira / descida aos infernos



4
Desço
para o centro da terra,
atravessando o sono inicial
dos fetos líquidos dos lagos.

E passando, levemente acordo
os profundíssimos olhos verdes, vagos,
das águas esperando
o calor filial dos peixes.

No dorso deste espírito dorido
que flutua pelas eternas penumbras,
cavalgo devassando as fontes da vida
donde goteja um leite amargo e turvo.



carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001






29 outubro 2019

carlos de oliveira / infância




I

Terra
sem uma gota
de céu.




carlos de oliveira
turismo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998










13 agosto 2019

carlos de oliveira / tarde



A tarde trabalhava
sem rumor
no âmbito feliz das suas nuvens,
conjugava
cintilações e frémitos,
rimava
as ténues vibrações
do mundo,
quando vi
o poema organizado nas alturas
reflectir-se aqui,
em ritmos, desenhos, estruturas
duma sintaxe que produz
coisas aéreas como o vento e a luz.



carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998








29 abril 2019

carlos de oliveira / papel




                Pego na folha de papel, onde o bolor do poema se infiltrou, levanto-a contra a luz, distingo a marca de água (uma ténue figura emblemática) e deixo-a cair. Quase sem peso, embate na parede, hesita, paira como as folhas das árvores no outono (o mesmo voo morto, vegetal) e poisa sobre a mesa para ser o vagaroso estrume doutro poema.



carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001













02 janeiro 2019

carlos de oliveira / praias






               Dorme, flutua numa espécie de lago. A respiração dos seios empurra contra as paredes do quarto, em ondas lentas, o meu corpo afogado. Não consigo dormir.

                Esperarei toda a noite nessas praias de cal, desertas, verticais.



carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998








21 setembro 2018

carlos de oliveira / desenho infantil



II

Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de mortos sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura».



carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001










18 agosto 2018

carlos de oliveira / vento




As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão:
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.


carlos de oliveira
cantata
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001








25 maio 2018

carlos de oliveira / descida aos infernos



3
Descendo sempre
em redor me projecto
na lama escura quase por criar
e pelas margens ácidas deste mortal trajecto
arrepiam-me estrelas a levedar.

Toldam-me os olhos gigantes de placenta,
génios abortados no parto destas furnas
onde não chega nunca, ó coisas diurnas,
a vossa luz piedosa,




carlos de oliveira
descida aos infernos
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001








09 abril 2018

carlos de oliveira / árvore



I
As raízes da árvore
rebentam
nesta página
inesperadamente,
por um motivo
obscuro
ou sem nenhum motivo,
invadem o poema
e estalam
monstruosas
buscando qualquer coisa
que está
em estratos
fundos,

II
talvez poços,
secretas
fontes primitivas,
depósitos, recessos
onde haja
um pouco de água
que as raízes
procuram
de página
em página
com a sua obsessão,
múltiplos filamentos
trespassando o papel,

III
seguindo o fio
da tinta
que desenha
as palavras
e tenta
fugir ao tumulto
em que as raízes
grassam,
engrossam, embaraçam
a escrita
e o escritor:

como podem
crescer
de tal modo

IV
no poema,
se a árvore
foi dispersa
em pranchas de soalho,
em móveis e baús
que fecham
para sempre
coisas
tão esquecidas,
como podem
romper
de súbito impetuosas
na aridez
do livro

V
e perseguir-me
assim,
se a areia
donde vêm
já vitrificada
pelo tempo
oculta
a árvore que morreu:

procuram
instalar-se
no interior da linguagem
ou substituí-la
por uma
infiltração

VI
quase
mortalizante:
mas
de repente
como apareceram
as raízes sossegam
[que terão
encontrado?]
e retiram
com o mesmo fluxo
do mar que se retraie deixa
atrás de si
silêncio:

VII
é então que vejo
no halo mais antigo
a árvore desolada,
os ramos em que poisam
as aves
doutros livros,
e pressinto
as raízes
através da sílica
onde a família dorme
com os ossos dispostos
nessa arquitectura
duvidosa
de símbolos

VIII
que chegaram
aqui
de mão em mão
para caberem todos
na constelação
exígua
que fulgura
ao canto do quarto:
o baú ponteado
como o céu
por tachas amarelas,
por estrelas
pregadas na madeira
da árvore.


carlos de oliveira
micropaisagem
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998