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08 junho 2024

jorge de sena / sete sonetos da visão perpétua

 
 
1
 
Anos sem fim, à luz do mar aceso,
te vi nudez quase total, tão grácil
figura juvenil, ambígua e fácil,
e ao longe às vezes totalmente nua
 
em só relance de malícia crua.
Tudo isso me atraía e me afastava,
embora a vista, retornando escrava,
a teus lugares me tivesse preso.
 
E quase sempre então tua figura,
sentada estátua, ou falsa sesta impura,
lá era, ao sol, o tempo congelado.
 
Hoje, subitamente, tu não viste
ninguém senão o meu olhar quebrado,
e com lenta inocência te despiste.
 
Mas quantas rugas no sorriso ansiado!
 
 
 
jorge de sena
peregrinato ad loca infecta (1969)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




02 novembro 2023

jorge de sena / suma teológica

 
 
Não vim de longe, meu amor, nem soçobraram
navios no alto mar, quando nasci.
 
Nada mudou. Continuaram as guerras;
continuou a subir o preço do pão;
continuaram os poetas, uma vez por outra,
a perguntar por ti.
 
É certo que, então, imensa gente
envelheceu instantânea e misteriosamente.
 
Mas até isso, meu amor, se não sabe ainda
se foi por minha causa,
se por causa de outros que terão nascido
ao mesmo tempo que eu.
 
 
 
jorge de sena
coroa da terra (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972



18 abril 2023

jorge de sena / «quem muito viu…»

 
 
Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extenso da justiça justa;
 
e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si e o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –
 
não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.
 
Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontra-lo morto.
 
 
 
jorge de sena
arte de música (1968)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




09 novembro 2022

jorge de sena / descerrar




Cansado, consentir-me-ei.
 
Nesse dia próximo ou distante,
                                            quando me sentar,
pegará uma das mãos a outra mão,
direi consolações balsâmicas
do bálsamo guardado avaramente
lá onde a solidão cala a ternura,
direi tão doce, que estarei sorrindo
ao terminar dizendo que o destino existe…
 
e então, hei-de ter piedade de mim próprio.
 
 
 
jorge de sena
coroa da terra (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972





 

26 setembro 2021

jorge de sena / l' été au portugal

 
 
Que esperar daqui? O que esta gente
não espera porque espera sem esperar?
O que só vida e morte
informes consentidas
em todos se devora e lhes devora as vidas?
O que quais de baratas e a baratas
é o pó de raiva com que se envenenam?
 
Emigram-se uns para as Europas
e voltam como se eram só mais ricos.
Outros se ficam envergando as opas
de lágrimas de gozo e sarapicos.
 
Nas serras nuas, nos baldios campos,
nas artes e mesteres que se esvaziam,
resta um relento de lampeiros lampos
espanejando as caudas com que se ataviam.
 
Que Portugal se espera em Portugal?
Que gente ainda há de erguer-se desta gente?
Pagam-se impérios como o bem e o mal
- mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?
 
Chatins engravatados, pelenguentas fúfias
passam de trombas de automóvel caro.
Soldados, prostitutas, tanto rapaz sem braços
ou sem as pernas - e como cães sem faro
os pilhas poetas se versejam trúfias.
 
Velhos e novos, moribundos mortos
se arrastam todos para o nada nulo.
Uns cantam, outros choram, mas tão tortos
que a mesquinhez tresanda ao mais singelo pulo.
 
Chicote? Bomba? Creolina? A liberdade?
É tarde, e estão contentes de tristeza,
sentados em seu mijo, alimentados
dos ossos e do sangue de quem não se vende.
 
(Na tarde que anoitece o entardecer nos prende).
 
 
                                           Lisboa, Agosto de 1971
 

jorge de sena
exorcismo (1972)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972





14 fevereiro 2021

jorge de sena / baptismo

 
 
Os mais difíceis poemas onde falo de amor
são aqueles em que o amor contempla.
 
O amor esquece ao contemplar,
esquece que não existe e encantado olha
um raio anónimo sob o vento mais leve.
 
Contempla, amor, contempla.
 
E vai criando o nome que darás ao raio.
 
 
jorge de sena
coroa da terra  (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




11 junho 2020

jorge de sena / ode para o futuro


Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.

Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.

E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.



jorge de sena
pedra filosofal (1950)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972






09 janeiro 2020

jorge de sena / aprender


I
Passo a minha mão pela tua cabeça,
recurvamente, atentamente, e só com dedos brandos,
olhando-a como passa e vendo onde passou.

Quero tanto saber o que tu pensas.

II
O que tu pensas, mas apenas como,
e quando e o porquê, e não
que estejas pensando ou não que a minha mão,
atenta e recurvada, passa brandamente.

Quero saber aquilo que nem sabes.

III
Aquilo que nem sabes – como saberias
o que o pensar é antes de pensar-se?

A mão que pousa e vai passar atenta.
O olhar que espera ver passar o gesto.
A tácita lembrança de volver os olhos.
A brisa que sabemos vai soprar tão mansa,
ainda antes, no fremir de pétalas ou folhas,
mas não na expectativa do arrepio prévio.

IV
Por que esperaste, ciente, a pele da minha mão?


jorge de sena
fidelidade (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972







10 junho 2019

jorge de sena / camões dirige-se aos seus contemporâneos



Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.



jorge de sena
metamorfoses (1963)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972






03 janeiro 2019

jorge de sena / humanidade




Na tarde calma e fria que circula
por entre os eucaliptos e a distância,
olhando as nuvens quase nada rubras
e a névoa consentida pelos montes,
névoa não subindo por não ser
fumo da vida que trabalha e teima,
e olhando uma verdura fugitiva
que a noite no céu queima tão depressa,
esqueço-me que há gente em cada parte,
gente que, de sempre, sofre e morre,
e agora morre mais ou sofre mais,
esqueço-me que a esperança abandonada,
a não ser de ninguém, é sempre minha,
esqueço-me que os homens a renovam,
que o fumo dos seus lares sobe nos ares…
Esqueço-me de ouvir cheirar a Terra,
Esqueço-me que vivo… E anoitece.



jorge de sena
coroa da terra (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972






12 maio 2018

jorge de sena / as mãos dadas



Um dia me falaste,
e as árvores morriam galho a galho seco.
Havia flores, recordo.
Havia ruas, ai também recordo.
E escadas
vazias.

Não me falaste, não. Fui eu quem perguntou,
beijando-te tremente, quantos anos tinhas,
e o teu nome.

Não tinhas nome; ou tinhas, mas não teu.
E a tua idade: as tuas mãos nas minhas.


jorge de sena
fidelidade  (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972







17 fevereiro 2018

jorge de sena / lepra





A poesia tão igual a uma lepra!
.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .  


E os poetas na leprosaria
vão vivendo
uns com os outros,
inspeccionando as chagas
uns dos outros.


jorge de sena
perseguição (1942)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972










31 dezembro 2017

jorge de sena / súplica final




Senhor: não peço mais que silêncio,
o silêncio das noites de planície como enevoadas águas,
o silêncio dos montes quando a tarde acabou e as pedras
se afiam na friagem que é azul-celeste,
o silêncio do sol encarquilhando as folhas,
e o vento na areia depois de ter passado,
o silêncio das ondas ao longe espumejando tranquilas,
o silêncio das mãos e o dos olhos,
e o das aves negras que pairam nas alturas
de um céu silencioso e límpido. Não peço
mais que silêncio. O silêncio das ideias que deslizam
no tecto escorregadio da memória silente.
E o silêncio dos sonhos coloridos, e o dos outros
a preto e branco imagens desejadas
que não pensei que desejava e esqueço
ao querer lembrá-las. E o silêncio
dos sexos que se possuem sem uma palavra.
E o do amor também, tão silencioso esse,
que não sei quem amo.

Não peço mais. Afasta
de mim o estrondo: não o das cidades,
ou dos homens, das águas, do que estala
na memória ou penumbra das salas desertas.
Afasta de mim o estrondo com que a vida
se acabará contigo, num rasgar de súbito
em que ficarei inerte e silencioso. O estrondo
em que não ouvirei mais nada. O estrondo
em que não mexerei um dedo. O estrondo
em que serei desfeito. O estrondo
em que de olhos abertos
alguém mos abrirá.

Senhor: não peço mais do que o silêncio do mundo,
o silêncio dos astros, o silêncio das coisas
que outros homens fizeram, e o das coisas
que eu próprio fiz. E o teu silêncio
de senhor que foi. Não peço mais.
Não é nada o que peço. Dá-me
o silêncio. Dá-me o que não fui:
silêncio (porque calei tanto):
o que não sou (pois que calo tanto):
o que hei- de ser (já que falar não adianta):
Silêncio.
Senhor: não peço mais.

1961


jorge de sena
peregrinato ad loca infecta (1969)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972





10 novembro 2017

jorge de sena / como queiras, amor...



Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.

1959



jorge de sena
post-scriptum  (1960)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




30 setembro 2017

jorge de sena / requiem de mozart



I

Ouço-te, ó música, subir aguda
à convergente solidão gelada.
Ouço-te, ó música, chegar desnuda
ao vácuo centro, aonde, sustentada
e da esférica treva rodeada,
tu resplandeces e cintilas muda
como o silente gesto, a mão espalmada
por sobre a solidão que amante exsuda
e lacrimosa escorre pelo espaço
além de que só luz grita o pavor.
Ouço-te lá pousada, equidistante
desse clarão cuja doçura é de aço
como do frágil mas potente amor
que em teu ouvir-te queda esvoaçante.


II

Ó música da morte, ó vozes tantas
e tão agudas, que o estertor se cala.
Ó música da carne amargurada
de tanto ter perdido que ora esquece.
Ó música da morte, ah quantas, quantas
mortes gritaram no que em ti não fala.
Ó música da mente espedaçada
de tanto ter sonhado o que entretece,
sem cor e sem sentido, no fervor
de sublimar-se nesse além que és tu.
Ó vida feita uma detida morte.
Ó morte feita um inocente amor.
Amor que as asas sobre o corpo nu
fecha tranquilas no possuir da sorte.


III

Além do falso ou verdadeiro, além
do abstracto e do concreto, além da forma
e do conceito, além do que transforma
contrários pares noutros par´s também,
além do que recorre ou nunca vem
ao que se pensa ou sente, além da norma
em que o não-ser se humilha e se conforma,
além do possuir-se, e para além
dessa certeza que outro ritmo dá
àquele de que as palavras têm sentido:
lá onde ouvir e não-ouvir se igualam
na mesma imagem virtual do na-
da – é que tu vais, ó musica, partido
o nó dos tempos que por ti se calam.


IV

Tudo se cala em ti como na vida
Tudo palpita e flui como no leito
em que se morre ou se ama, já desfeito
o abraço do momento em que, sustida
a sensação da posse conseguida,
a carne pára a ejacular-se atenta.
Tudo é prazer em ti. Quanto alimenta
esta glória de existir, trazida
a cada instante só do instante ser-se,
reflui em ti, liberto, puro, afiante,
certeza e segurança de conter-se
na criação virtual o renascer-se
agora e sempre pelo tempo adiante,
mesmo esquecido. Em ti, o conhecer-se
deste possível é a paz do amante.




jorge de sena
arte de música  (1968)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972



25 agosto 2017

jorge de sena / fidelidade




Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
com outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos se voltassem.



jorge de sena
fidelidade  (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972