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03 novembro 2024

daniel faria / trago os instrumentos do fogo

 
 
 
Trago os instrumentos do fogo
Ponho-os na boca
Ponho-os no coração
 
Trago os instrumentos da respiração
– Uma montanha, uma árvores que lhe dá abrigo –
E suspendo-os nos ramos como pinhas que dão sombra
Um lugar fresco para os deportados de Sião nas margens
 
Trouxe também os instrumentos dos mineiros
Uma luz na cabeça voltada para o pensamento
Um olhar profundo
O modo prisioneiro de virem livremente para fora
 
E trago todos os instrumentos na circulação do sangue e na ocupação
                                                                                                     [permanente
Das mãos
Para o instrumento difícil
Do silêncio
 
 
 
daniel faria
poesia
homens que são como lugares mal situados
quasi
2003
 



20 abril 2024

daniel faria / homens que trabalham sob a lâmpada

 



 

 
Homens que trabalham sob a lâmpada
Da morte
Que escavam nessa luz para ver quem ilumina
A fonte dos seus dias
 
Homens muito dobrados pelo pensamento
Que vêm devagar como quem corre
As persianas
Para ver no escuro a primeira nascente
 
Homens que escavam dia após dia o pensamento
Que trabalham na sombra da copa cerebral
Que podam a pedra da loucura quando esmagam as pupilas
Homens todos brancos que abrem a cabeça
À procura dessa pedra definida
 
Homens de cabeça aberta exposta ao pensamento
Livre. Que vêm devagar abrir
Um lugar onde amanheça.
Homens que sentam para ver uma manhã
Que escavam um lugar
Para a saída.
 
 
 
daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel leão
1998
 




30 março 2024

daniel faria / explicação das casas

 



 
 
Mesmo no interior do quarto
És o lado de fora da casa
Os inúmeros degraus da casa. A mais antiga
Criança subindo-os um a um
 
 
 
daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998
 



22 janeiro 2024

daniel faria / precisava de falar-te ao ouvido

 
 
Precisava de falar-te ao ouvido
De manter sobre a rodilha do silêncio
A escrita.
Precisava dos teus joelhos. Da tua porta aberta.
Da indigência. E da fadiga.
Da tua sombra sobre a minha sombra
E da tua casa.
E do chão.
 
 
 
daniel faria
poesia
antemanhã
quasi
2003




 

21 julho 2023

daniel faria / zaqueu

 



 
A árvore foi a forma de te ver
E desci para abrir a casa.
De me teres visitado e avistado
Entre os ramos
Fizeste-me passagem
Da folha ao voo do pássaro
Do sol à doçura do fruto.
Para me encontrares me deste
A pequenez.
 
 
 
daniel faria
poesia
se fores pelo centro de ti mesmo
quasi
2003
 




07 janeiro 2023

daniel faria / como doem as árvores

 



 
Como doem as árvores
Quando vem a Primavera
 
E os amigos que ainda estão de pé
 
 
 
daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998




 


31 julho 2022

daniel faria / do inesgotável

 
 
Abriu-se em ferida a cerca do teu corpo
E deixas vindimar-me quem quer
Que passe
 
Até o muro é sombra que não floresce
Enquanto me repetem a pergunta
 
Tu me cultivaste
Tu deixaste a geada sobrevir
 
 
 
daniel faria
poesia
do inesgotável
quasi
2003




05 junho 2022

daniel faria / magoa ver a magnólia cair

 
 
7
Magoa ver a magnólia cair. Acredita.
O relâmpago vem
Sobre ela. A tempestade.
As plantas são tão frágeis como as cabanas dos homens.
Somos muito frágeis os dois neste poema
Com o relâmpago, a cabana, com a magnólia aos ombros
Sem nenhum terreno pulmonar intacto
Para depois de nos olharmos um de nós dizer
Plantêmo-la aqui – aqui
É o meu pulso, a minha boca
É a retina com que procuras, é a madeira da porta
Com que te fechas em casa. Prometo-te
Eu nunca vou fechar os olhos
As mãos.
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
anos 90 e agora
uma antologia da nova poesia portuguesa
quasi
2001




 

05 maio 2022

daniel faria / procuro o lento cimo da transformação

 
 
Procuro o lento cimo da transformação
Um som intenso. O vento na árvore fechada
A árvore parada que não vem ao meu encontro.
Chamo-a com assobios, convoco os pássaros
E amo a lenta floração dos bandos.
Procuro o cimo de um voo, um planalto
Muito extenso. E amo tanto
A árvore que abre a flor em silêncio.
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
do inesgotável
quasi
2003




26 outubro 2021

daniel faria / e desço à verdura das tuas mãos

 
 
E desço à verdura das tuas mãos
Como as manadas que buscam as minas
 
Faltam-me apenas os pés feridos dos que peregrinam
Faltam-me no chão duro das promessas
Os joelhos
 
Queria tanto andar em redor, rodear-te, se soubesse como
Queria amar-te tanto
 
O que sei da unidade é a túnica
Tirada à sorte. O que sei da morte e da vida
É o livro escrito por dentro e por fora
Silêncio escrito por dentro
Palavra escrita a toda a volta da história
 
O que sei do céu
É a mão com que sossegas os ventos
 
Desço à escritura como os veados aos salmos
 
 
 
daniel faria
dos líquidos
do inesgotável
quasi
2003





 

22 janeiro 2021

daniel faria / costumo poisar os dedos, tactear

  
 
Costumo poisar os dedos, tactear
Até ser o homem que volta para casa
 
Costumo abrir as mãos com o ferrolho da porta
Costumo estendê-las continuamente
 
A rua também passa à minha frente
Cada dia e não sabe quando vens
 
 
 
daniel faria
das inúmeras águas
poesia
quasi
2003




06 novembro 2020

daniel faria / para o instrumento difícil do silêncio

 
 
3
 
Porque a morte tem o seu tempo
A ruína soma ruína, à cabeça
Equilibra a existência desmoronada e inteira.
Tu és o que edifica
Tu constróis mil vezes.
Porque o raio tem o seu tempo.
És o clarão, a lâmpada, a estrela
Somas luz à luz.
Não és a luz, és mais que a luz
Porque a noite tem o seu tempo.
 
 
 
daniel faria
poesia
quasi
2003




 

06 junho 2020

daniel faria / homens que são como projectos de casas



Homens que são como projectos de casas
Em suas varandas inclinadas para o mundo
Homens nas varandas voltadas para a velhice
Muito danificados pelas intempéries

Homens cheios de vasilhas esperando a chuva
Parados à espera
De um companheiro possível para o diálogo interior

Homens muito voltados para um modo de ver
Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro
De si mesmo
Homens tão impreparados tão desprevenidos
Para se receber

Homens à chuva com as mãos nos olhos
Imaginando relâmpagos
Homens abrindo lume
Para enxugar o rosto para fechar os olhos
Tão impreparados tão desprevenidos
Tão confusos à espera de um sistema solar
Onde seja possível uma sombra maior



daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel leão
1998







23 fevereiro 2020

daniel faria / sou gémeo de mim



Sou gémeo de mim e tudo
O que sou é
Distância.
Estou sentado sobre os meus joelhos
Separado.
Aquilo que une
É um rumor.
Não descanso. Sou urgência
De outro sítio. E pudesse velar-me
Longe
Dos homens como se neles
Adormecesse.



daniel faria
poesia
quasi
2003








04 março 2019

daniel faria / guarda a manhã




Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998









29 dezembro 2018

daniel faria / explicação da distância




Mesmo que o vagar me aproximasse
Do que és
E cada dia me entregasse a outro
Dia
E a encruzilhada se desamarrasse
Em minhas mãos



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998









10 setembro 2018

daniel faria / estranho é o sono que não te devolve





Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998








03 janeiro 2018

daniel faria / examinemos também a escrita




Examinemos também a escrita
O solo negro deixado pelo fogo
O mecanismo semelhante às queimadas
Deixando a terá arável na sua devastação.
Tudo isto interessa para retomarmos a pedra onde está escrita
A palavra nova
A pedra onde corre o sangue.
Enquanto perguntas pelas dez palavras.
Põe a boca na palavra líquida
Examina o coração da carne em vez da escrita antiga
O verbo onde jorra a palavra incessante

Há dentro dela uma pedra nupcial




daniel faria
poesia
uma espécie de anjo ferido na raiz
quasi
2003




14 junho 2017

daniel faria / a mão aberta já não liga



A mão aberta já não liga
E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas
Há nos meus olhos dois poços
Na paisagem
Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas
E é noite. No meio do escuro peço
Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos
Levo-a à boca e das chamas bebo
Água



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998




28 maio 2016

daniel faria / sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos



Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar


daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel  leão
2002