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27 fevereiro 2024

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo

 




 
7
 
do meu braço
a mancha de sangue
corre incessantemente
 
comboio esperado há muito
sombra da noite
talvez o corvo
em que não acreditamos
 
em criança aprendi
a olhar a lua distante
mar ignorado da memória
– lâmina aguda e
extremamente fina –
 
a grande aranha do tempo
duas asas       sono que
nos foi dado outrora
 
 
                                   junho- 1950
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018
 





30 abril 2022

mário-henrique leiria / e as ruas

 
 
 
 
e as ruas
nuas como as pedras que as fazem
talvez avenidas construídas
pra serem apenas ruas
leves       distantes       solitárias
planícies abertas
aos pés fortes que as seguem
pequenas ruas
de Lisboa
nuas       nuas       nuas
como os pés duros que as amam
estreitas e tão largas
como o canto lento doce forte
dos pés daqueles que as caminham
pró trabalho
para a sorte       para a morte
 
 
 
mário-henrique leiria
lisboa ao voo do pássaro
obras completas
poesia
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2018



 

27 novembro 2021

mário-henrique leiria / cantar de amigo

 
 
Morros distantes
rios escuros
um homem só
por entre muros
 
Lua remota
terra silente
um homem só
impaciente
 
Cornos sangrentos
cavalo d’ água
um homem só
e sua mágoa
 
O sol que nasce
vem a manhã
um homem só
com seu afã
 
Pleno dia
caminhos duros
todos os homens
já não há muros
 
 
 
mário-henrique leiria
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2018




 

30 junho 2021

mário-henrique leiria / esperar-te

 
 
esperar-te
esperar-te da mesma maneira solitária
com que se tem
saudades da paisagem numa vista
ficar incerto
– talvez desconhecido –
olhando as mãos vazias e inúteis
um cigarro somente
enquanto passam minúsculos animais
e o fumo te espera também
esperar
esperar apenas e não já esperar-te
esperar qualquer coisa
um rio que corra lentamente
um grande desastre de automóveis
o desmoronar da torre antiquíssima
um corpo que apareça de súbito
esperar
só por esperar
tanto pode ser que venhas
com que não venhas
que nunca venhas
depois
quando chegares
já eu parti.
 
 
 
mário-henrique leiria
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2018






 

16 janeiro 2021

mário-henrique leiria / mulher fantasma

 
 
Mulher fantasma
chapéu flor
corola pétala
 
Ventre oco
antro réptil
estrela sismo
forma irreal
 
minha flor mulher
meu brinquedo infante
minha cadeira vento
meu cristal encanto.
 
 
 
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2018

 




27 abril 2020

mário-henrique leiria / três quadras patrióticas para boa edificação da juventude



Na linda praia de Fão,
a mais bonita do Minho,
os homens vão de roupão
só D. Fuas, de roupinho…

Neste frio que nos trama
e gela até uma santa,
o que é bom é ter na cama
uma Duquesa de Mântua

Naquela batalha ímpar
Foi uma coisa de má nota
Ver todos em bem trajar
… e a padeira em aljubarrota.
 
                   BASTA!



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21 dezembro 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



XI

escuta amor

talvez um dia
em que de mim já nada mais exista
te lembres de dois braços
que te abraçaram convulsivamente
nessa altura
deixa que os lábios te sangrem
deixa que o sangue
te corra pelo peito

e as mãos
essas
abandona-as…


                                   dezembro- 1950



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07 agosto 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



X

qualquer outra vida
não esta
qualquer outra existência
não a que nos querem dar
que pela força de sermos nela
sabemos errada
o voo das aves
é em si muito mais
do que o que parece
nós próprios estamos aqui
não para o que nos dizem
mas sim     sim
para seguirmos o nosso caminho
caminho que nos foi dado
oferecido
há muitos séculos já
quando ainda sabíamos da vida
quando ainda o nosso corpo
era o nosso corpo
arco vibrante a ligar-nos com
o desconhecido
nós somos da montanha gelada
do lugar esquecido
raiva e maldição
e também amor exaustivo
agora     logo     sempre
a recusa é nossa     só nossa
mas também nosso
é     será sempre
o encontro dos corpos que temos
já antigos     muito belos
um dia

          julho – 1950




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13 maio 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



VI

não posso
tu sabes que não posso
repetir-me
o sangue que cai uma vez
não torna a cair
a estrela   a febre
as unhas cravadas no peito
palavra já afirmada
dita por mim e por ti
não   não   não
não quero
outra vez a mesma existência
tu sabes
que o abandonar o corpo
dentro de uma longa superfície
nos faz saber que
– cavalo ou mola de aço –
tudo é exaustivamente brilhante
os próprios extremos da noite
 se colam aos nossos dedos
e palpavelmente nos aparecem
luminosos
erguidos eroticamente

o espaço povoado
por esferas de cristal
digo eu
não sei   talvez

não posso
tornar à primeira vez
que te encontrei

agora vai
leva os teus braços
os teus olhos
o teu sexo

parte
deixa-me apenas
o vento

maio 1950


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12 março 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



II

Deixa que eu quebre tudo que tenho e que terei
tudo o que é de todos e que só a mim pertence
deixa-me quebrar o cavalo que me deste
na noite do nosso primeiro encontro
deixa-me partir a bola o cão o espaço
deixa-me quebrar a minha casa e a minha cama
a minha única cama…
não quero que me contem a aventura
nem que me dêem almofadas
não quero que me ofereçam sombras
só por mim construídas e logo abandonadas
nem sequer esquinas de ruas
não quero a vida
sei claramente que a não quero
a não ser que ela esteja partida quebrada
quebrada por mim e por ti

e a minha infância
essa dou-ta
inteira muito longa e cruel
deixa que dela me fique apenas
essa crueldade
e que nela só eu siga
ignorando o que me deste
e que
martelo ou pedra
eu continue partindo quebrando
esfacelando dilacerando
o teu corpo que já não está ao meu alcance
deixa-me ser anatomicamente autêntico
sem erro
sangrando
perdido para sempre

abril 1950



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31 dezembro 2018

mário-henrique leiria / cocktail “canadian club”




I

2/3 de Whisky “Canadian Club”
1/3 de Vermouth Italiano
Algumas gotas de “Bitter Angustura”

Beba à alegria que passa
E esqueça o pesar passado
Quem muito pensa na desgraça
Acabará desgraçado



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13 setembro 2018

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo




9

quando ferem alguém
é a mim     só a mim que ferem
é na minha carne
que todos os golpes se encontram
não quero
não posso com este constante sangrar
separem-me dos outros
separem a minha carne
da carne de todos
deixem-me o sangue
a correr
ser só o meu sangue
e nada mais


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06 agosto 2018

mário-henrique leiria / poema das quatro horas




Olha, lá vem o barco
que traz sonhos e sacas de feijão…

Porque há ainda tanto frio,
agora que tudo adormeceu?
Lá em cima o violinista
toca aquela sinfonia
que nós ouvimos na tarde de 6.ª feira
e a sentinela que guarda
os Azuis-Mistério
passeia à espera da hora de almoço.
Tudo se vende e tudo se compra
ali na loja do Frio e
até há quem goste de comprar
bailados de homens que passeiam…
desde que a noite é baça,
tanto faz que a dancem
com movimentos heráldicos ou
com curvas sensitivas…
O imprescindível é sempre o imprescindível
e a dança lá está,
seja ou não verdade…
A sentinela
dança os bailados
do SETE
e tudo olha o fundo
que fica para lá dos homens…

………………………………………………………………….

Às quatro horas
parou o movimento eterno…



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12 julho 2018

mário-henrique leiria / panoramas do brasil




Nos parques dormem mendigos
enrolados em jornal.
Os notívagos insectos,
crepitam e desabafam.
A neblina cobre a rua
obumbra as feições da lua,
faz dos transeuntes espectros.
Imerso em meus devaneios,
assobiando cantigas
que inda no berço aprendi,
eu sigo perambulando
vendo coisas espantosas
que não supunha existir.

Que fazem as negras
cingidas em postes
de iluminação?
Passei-lhes por perto
nenhuma me viu
estão obtusas
de tanta cachaça,
e desilusão.
São negras sedentas
famintas e nuas
chorando nas ruas,
trazendo no bucho
pecados alheios,
dormindo? Coitadas
pêlos escaminhos
e pelas sarjetas
dos templos sagrados
aonde ressoam
tranquilos e fartos
os gordos sicários
do meigo Jesus.

No botequim
a ruiva de henné
no colo do homem
ao qual explorava
com gesto fútil
às vezes sorria.
Na boca postiça
sorriam postiços
seus dentes de louça.
No meio da noite
é o pederasta,
tipo numeroso,
que acha os boêmios
em altos clamores
de tara mental.
Os que se aproximam,
desejam dinheiro
para a bacanal.

Um guarda-noctruno,
obeso e cafuzo,
em roncos suínos
de besta saciada,
tirava cochilos
num carro esquecido
que à beira da estrada
dormia também.
De madrugada,
meio à neblina,
e que se acirram
e recrudescem
trôpegos passos
soturnos ecos
da dura faina
das prostitutas.

Gatos que vivem ao léu
dão uma nota de instinto
fornicando nos telhados
e canteiros desfolhados
de madames irascíveis.
De vez em quando o berreiro
dos automóveis que passam
conduzindo mariposas
para o amor dos milionários.
Depois retorna o silêncio
onde seus passos explodem
como flores apagadas.
O mundo é só, quem te espera?
Os bares não têm amigos,
mulheres não têm sorrisos,
as estrelas feneceram
na madrugada sem fim.
Só globos de luz vegetam
boiando na escuridão
como que vindos de longe,
fazendo as vezes de estrelas
luzeiros do engenho humano,
iluminando a sarjeta
onde rola a perdição.

E quando amanhece
e o dia estremece
saltando nos céus,
ninguém reconhece
as coisas que vê.
O mundo girando,
os ricos gozando,
os pobres penando,
os párias morrendo…
a vida correndo…

Alguns ressonando
em camas de pena,
em leitos de pedra
em leitos de pedra
vão outros dormir.

E o mundo girando
a vida correndo
e os deuses sorrindo
sorrindo e chorando
das coisas que vêem.
E o mundo girando
e o dia passando
e a noite chegando
e os homens gritando
de fome e de dor.




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