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22 março 2022

blaise cendrars / prosa do transiberiano e da joaninha de frança

 
 
Nesse tempo estava eu na adolescência
Tinha apenas dezasseis anos e já não me lembrava
          da minha infância
Estava a 16.000 léguas da terra onde nascera
Estava em Moscovo, na cidade dos mil e três
          campanários e das sete estações de caminho
          de ferro
Mas não estava farto das sete estações
          e das mil e três torres
Porque a minha adolescência era tão ardente
          e tão louca
Que o meu coração ardia, alternadamente, como
          o templo de Éfeso ou a Praça Vermelha
          de Moscovo
Quando o sol se põe.
E os meus olhos iluminavam caminhos antigos.
E era já tão mau poeta
Que não sabia ir até ao fim.
 
O Kremlin era como um imenso bolo tártaro
Coberto de ouro,
Com as grandes amêndoas das catedrais muito
          brancas
E o ouro meloso dos sinos…
Um velho monge lia-me a velha lenda de Novgorode
Eu tinha sede
E decifrava caracteres cuneiformes
Depois, subitamente, os pombos do Espírito-Santo
          levantavam voo na praça
E as minhas mãos voavam também, com sussurros
          de albatroz
Eram as ultimas reminiscências do último dia
Da última viagem
E do mar.
 
No entanto, eu era muito mau poeta.
Não sabia ir até ao fim.
Tinha fome.
E todos os dias e a todas as mulheres dos cafés
          e a todos os copos
Gostaria de bebê-los e parti-los
E a todas as montras e a todas as ruas
E todas as casas e todas as vidas
E a todas as rodas dos fiacres que rodavam
          em turbilhão pelas más estradas
Gostaria de mergulhá-los numa fornalha de gládios
E triturar todos os ossos
E arrancar todas as línguas
E liquefazer todos os enormes corpos estranhos e nus
          sob vestimentas que me transtornam…
Pressentia a vinda do grande Cristo vermelho
          da revolução russa…
E o sol era uma chaga terrível
Que se abria como um braseiro.
 
[…]
 
 
 
blaise cendrars
prosa do transiberiano e da joaninha de frança.
poesia em viagem
trad. liberto cruz
assírio & alvim
1974




 

18 maio 2016

blaise cendrars / o fim do mundo



20

Meio-dia. Praça de Notre-Dame. Os autocarros rodam à volta do abrigo central. Um gato-pingado sai do hospital, seguido por cegos da guerra. Uma secção da Polícia Municipal está alinhada à frente da caserna, do outro lado da rua. Homens apressados riscam a praça em todos os sentidos. Na margem esquerda passa um bando ruidoso de estudantes.

21

Ao primeiro toque de clarim, o tamanho do disco solar aumenta um número e a sua luz enfraquece. Todos os astros surgem subitamente no céu. É bem visível que a luz está a rodar.

22

O Anjo N.-D. incha as bochechas ao máximo.

23

Vemos transeuntes taparem os ouvidos e a voltarem a cara, sem cerimónia.

24

Todas as cidades do mundo se levantam no horizonte, escorregam ao longo das vias férreas e vêm juntar-se, aglomerar-se à frente da Notre-Dame.

25

O sol imobiliza-se. É meio-dia e um minuto.

26

Tudo o que os homens construíram desaba imediatamente sobre os vivos e soterra-os. Só o que ainda tem um resto de vida mecânica resiste mais dois segundos. Vemos comboios andar sem comando, máquinas rodar em vazio, aviões cair como folhas mortas.

27

Uma imensa coluna de poeira sobe a direito no céu e depois racha, divide-se, deita-se, gira em turbilhão, esfarrapa-se, espalha-se em todos os sentidos; sopram ventos de tempestade; o mar abre-se e fecha-se; as montanhas do México abanam em plena luz.



blaise cendrars
o fim do mundo filmado pelo anjo n.-d.
tradução de aníbal fernandes
assírio & alvim
2004




22 junho 2015

blaise cendrars / nesse tempo estava eu na adolescência


(1)

Nesse tempo estava eu na adolescência
Tinha apenas dezasseis anos e já não me lembrava
     da minha infância
Estava a 16.000 léguas da terra onde nascera
Estava em Moscovo, na cidade dos mil e três
     campanários e das sete estações de caminho
     de ferro
Mas não estava farto das sete estações
     e das mil e três torres
Porque a minha adolescência era tão ardente
     e tão louca
Que o meu coração ardia, alternadamente, como
     o templo de Éfeso ou a Praça Vermelha
     de Moscovo
Quando o sol se põe.
E os meus olhos iluminavam caminhos antigos.
E era já tão mau poeta
Que não sabia ir até ao fim.

O Kremlin era como um imenso bolo tártaro
Coberto de ouro,
Com as grandes amêndoas das catedrais muito
     brancas
E o ouro meloso dos sinos…
Um velho monge lia-me a velha lenda de Novgorode
Eu tinha sede
E decifrava caracteres cuneiformes
Depois, subitamente, os pombos do Espírito-Santo
     levantavam voo na praça
E as minhas mãos voavam também, com sussurros
     de albatroz
Eram as últimas reminiscências do último dia
Da última viagem
E do mar.

(…)


blaise cendrars
prosa do transiberiano e da joaninha de frança
poesia em viagem
trad. liberto cruz
assírio & alvim
1974



17 junho 2013

blaise cendrars / prosa do transiberiano e da joaninha de frança


(...)

Do fundo do coração brotam-me lágrimas
Se penso, Amor, na minha amada;
Não passa duma criança, que encontrei
Pálida, imaculada, no fundo dum bordel,
É uma criança, loura, risonha e triste,
Não sorri nem chora;
Mas no fundo dos seus olhos, quando vos deixa beber
Treme um delicado lírio de prata, a flor do poeta.

É meiga e calada, sem nada a apontar,
Estremece à vossa aproximação;
Mas quando eu volto, daqui, dali, da festa,
Ela dá um passo, depois fecha os olhos -
      e dá um passo.
Porque ela é o meu amor, e as outras mulheres
Só têm vestidos de ouro sobre grandes corpos
      de chamas,
A minha pobre amiga está tão desamparada
Está toda nua, não tem corpo - é demasiado pobre.
É uma flor cândida, delgada,
A flor do poeta, um pobre lírio de prata,
Muito frio, muito só, e já tão seco
Que as lágrimas brotam se penso no seu coração.




blaise cendrars
prosa do transiberiano e da joaninha de frança.
poesia em viagem
trad. liberto cruz
assírio & alvim
1974



14 fevereiro 2013

blaise cendrars / o amor é masoquista



O amor é masoquista.
Esses gritos, essas queixas, essas suaves inquietações,
esse estado de angústia dos apaixonados,
esse estado de expectativa, esse sofrimento latente,
subentendido, apenas manifestado,
essas mil e uma preocupações acerca do ser amado,
essa fugacidade do tempo, essas susceptibilidades,
essas alternâncias de humor, essas divagações,
essas criancices, essa tortura moral
em que a vaidade e o amor-próprio se encontram em jogo,
a honra, a educação, o pudor,
esses altos e baixos do tónus nervoso,
esses desvarios da imaginação, esse feiticismo,
essa precisão cruel dos sentidos
que chicoteiam e que rebuscam,
essa queda, essa prostração,
essa abdicação, esse aviltamento,
essa perca e essa recuperação perpétua da personalidade,
esses embaraços, essas palavras, essas frases,
esse emprego do diminutivo, essa familiaridade,
essas excitações nos contactos,
essa tremura epiléptica, essas recaídas sucessivas e
multiplicadas, essa paixão cada vez mais perturbadora,
tempestuosa e progressivamente devastadora
até à completa inibição,
ao completo aniquilamento da alma,
até à atonia dos sentidos,
até ao esgotamento do tutano,
ao vazio do cérebro,
até à secura do coração,
essa necessidade de prostração, de destruição,
de mutilação, essa necessidade de efusão,
de adoração, de misticismo,
essa insaciabilidade que leva a pedir auxílio à hiper-irritabilidade
das mucosas, ás divagações do gosto,
às desordens vasomotoras ou periféricas
e que apela para o ciúme e para a vingança,
para os crimes, para as mentiras, para as traições,
essa idolatria, essa melancolia incurável,
essa profunda miséria moral,
essa dúvida definitiva e pungente, esse desespero,
todos esses estigmas não constituem porventura os próprios sintomas do amor,
segundo os quais se pode diagnosticar
e seguidamente traçar com mão firme
o quadro clínico do masoquismo?




blaise cendrars
moravagine
trad. e pref. Ruy Belo
livros cotovia
1992



25 agosto 2012

blaise cendrars / livros


  


Há livros que falam do canal do Panamá
Não sei o que dizem os catálogos das bibliotecas
E não ouço os diários das finanças
Embora os boletins da Bolsa sejam a nossa oração quotidiana

O Canal do Panamá está intimamente ligado à minha infância...
Eu brincava debaixo da mesa
Dissecava moscas
Minha mãe contava-me as aventuras dos seus sete irmãos
Dos meus tios
E quando recebia cartas
Deslumbramento!
Cartas com belos selos exóticos que trazem versos de Rimbaud no exergo
Nesse dia já não me contava mais nada
E eu ficava triste debaixo da mesa.
Foi também por essa altura que li a história do tremor de terra de Lisboa
Mas creio bem
Que a derrocada de Panamá é duma importância mais universal
Porque me perturbou a infância.






blaise cendrars
poesia em viagem
trad. liberto cruz
assírio & alvim
1974


29 outubro 2008

blaise cendrars / prosa do transiberiano e da joaninha de frança







(...)

Do fundo do coração brotam-me lágrimas
Se penso, Amor, na minha amada;
Não passa duma criança, que encontrei
Pálida, imaculada, no fundo dum bordel,
É uma criança, loura, risonha e triste,
Não sorri nem chora;
Mas no fundo dos seus olhos, quando vos deixa beber
Treme um delicado lírio de prata, a flor do poeta.

É meiga e calada, sem nada a apontar,
Estremece à vossa aproximação;
Mas quando eu volto, daqui, dali, da festa,
Ela dá um passo, depois fecha os olhos -
e dá um passo.
Porque ela é o meu amor, e as outras mulheres
Só têm vestidos de ouro sobre grandes corpos
de chamas,
A minha pobre amiga está tão desamparada
Está toda nua, não tem corpo - é demasiado pobre.
É uma flor cândida, delgada,
A flor do poeta, um pobre lírio de prata,
Muito frio, muito só, e já tão seco
Que as lágrimas brotam se penso no seu coração.








blaise cendrars
prosa do transiberiano e da joaninha de frança, excerto
poesia em viagem
trad. liberto cruz
assírio & alvim
1974






12 abril 2007

eu vi






Eu vi
Vi os comboios silenciosos os comboios negros que
vinham do Extremo-Oriente e que passavam como
fantasmas
E o meu olhar, como a lanterna da retaguarda, corre
ainda atrás desses comboios
Em Talga 100 000 feridos agonizavam por falta
de cuidados
Visitei os hospitais de Krasnõiarsk
E em Khi!ok cruzámos com um longo comboio de
soldados loucos
Vi nos lazaretos chagas abertas feridas que
sangravam a jorros.



E os membros amputados dançavam em volta
ou levantavam voo no ar roufenho
O incêndio estava em todos os rostos em todos
os corações
Dedos idiotas tamborilavam em todos os vidros
E sob a pressão do medo os olhares rebentavam
como abcessos
Em todas as estações deitavam fogo aos vagões


E vi
Vi comboios de 60 locomotivas que se escapavam
a todo o vapor perseguidas pelos horizontes
com cio e bandos de corvos que voavam
desesperadamente atrás,
Desaparecer
Na direcção de Porto-Artur.

Em Tchita tivemos alguns dias de descanso
Paragem de cinco dias devido a obstáculos da linha
Passámo-los em casa do Senhor lankéléwitch, que
queria dar-me em casamento a sua filha única.
Depois o comboio tornou a partir.
Agora era eu que me sentara ao piano e tinha dores
de dentes
Revejo quando quero esse interior calmo a loja do pai
e os olhos da filha que vinha à noite para a minha cama
Moussorgsky

E os lieder de Hugo Wolf
E as areias do Gobi
E em Khaïlar uma caravana de camelos brancos
Creio bem que estive bêbedo durante mais de
500 quilómetros
Mas eu estava ao piano e foi tudo quanto vi
Quando se viaja deviam-se fechar os olhos
Dormir
Gostaria tanto de dormir
Reconheço todos os países de olhos fechados pelo
seu odor
E reconheço todos os comboios pelo barulho que
fazem
Os comboios da Europa são a quatro tempos enquanto
os da Ásia são a cinco ou a sete
Outros seguem em surdina são canções de embalar
E há os que no ruído monótono das rodas me lembram
a prosa pesada de Maeterlinck
Decifrei todos os textos confusos das rodas e reuni
os elementos dispersos duma violenta beleza
Que eu possuo
E me força.



Tsitsika e Kharbine
Não vou mais longe
É a última estação
Desembarquei em Kharbine quando acabavam
de deitar fogo às instalações da Cruz Vermelha.

Ó Paris
Grande lareira ardente com os tições entrecruzados
das tuas ruas e velhas casas que se debruçam
por cima e se aquecem
Como os avós
E eis os anúncios, vermelho, verde, multicolores como
o meu passado em resumo amarelo
Amarela a cor altiva dos romances da França
no estrangeiro.
Nas grandes cidades gosto de me meter nos
autocarros em andamento
Os da linha Saint-Germain-Montmartre levam-me
ao assalto da Butte
Os motores mugem como touros de ouro
As vacas do crepúsculo pastam o Sacré-Coeur
Ó Paris
Estação central cais das vontades cruzamento das
inquietações
Só os droguistas têm ainda um pouco de luz por cima
das portas
A Companhia Internacional das Carruagem-Camas
e dos Grandes Expressos Europeus enviou-me
um prospecto
É a mais bela igreja do mundo
Tenho amigos que me rodeiam como barreiras
Têm medo quando eu parto que nunca mais volte

Todas as mulheres que conheci erguem-se
nos horizontes
Com gestos lastimosos e olhares tristes de semáforos
à chuva
Bela, Inês, Catarina e a mãe ‘do meu filho na Itália
E ainda a mãe do meu amor na América
Há gritos de sirene que me rasgam a alma
Na Manchúria um ventre estremece ainda como num
parto
Gostaria
Gostaria de nunca ter feito as minhas viagens
Esta noite um grande amor atormenta-me
E contra a minha vontade penso na jovem Joana
de França.
Foi numa noite de tristeza que escrevi este poema
em sua honra
Joana
A jovem prostituta
Estou triste estou triste
Irei ao Lapin Agile recordar-me da minha juventude
perdida
E beber copinhos
Depois voltarei sozinho para casa










Paris
Cidade da Torre única da enorme Forca e da Roda
do Suplício
Paris, 1913













blaise cendrars
poesia em viagem
assírio & alvim
1974




20 fevereiro 2007

moravagine




Ó jovem, considera a secura
dos trágicos que se perdem em facécias. Não esqueças
que não existe alguma vez progresso
quando o coração petrifica. É
preciso que toda a ciência se
ordene à semelhança dum fruto que
se dependure na ponta de uma árvore
de carne e que amadureça
ao sol da paixão,
histologia, fotografia, campainha
eléctrica, telescópios, pássaros,
amperes, ferro de passar,
etc. – Tudo isto é para deslumbrar a porra da hu-
manidade.


O teu rosto é tão diferente
tão comovente molhado de
lágrimas e pronto a rebentar
de riso.





blaise cendrars
moravagine
trad. e pref. ruy belo
livros cotovia
1992