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07 setembro 2024

albert camus / os antigos filósofos

 



 
Os antigos filósofos (naturalmente) pensavam muito mais do que liam. Eis porque se agarravam tão tenazmente ao concreto. A imprensa modificou as coisas. Lê-se mais do que se pensa. Não temos hoje filosofias mas apenas comentários. É o que diz Gilson ao afirmar que à idade dos filósofos que se ocupavam de filosofia sucedeu a idade dos professores de filosofia que se ocupam dos filósofos. Há nesta atitude ao mesmo tempo modéstia e impotência. E um pensador que começasse o seu livro por estas palavras. «Tomemos as coisas a partir dos seus princípios» ficaria exposto aos sorrisos. Chegou-se ao ponto em que um livro de filosofia que fosse hoje publicado e não se apoiasse em nenhuma autoridade, citação, comentários, etc., não seria tomado a sério. E no entanto…
 
 
 
albert camus
primeiros cadernos
caderno n.º 4 janeiro 1942 / setembro 1945
trad. não disponível (antónio quadros?)
livros do brasil
1973



19 agosto 2021

albert camus / peste

 
 
Peste… «E de cada vez que li uma história de peste, do fundo de um coração envenenado pelas suas próprias revoltas e pelas violências dos outros, um grito claro se ergueu dizendo que no entanto havia nos homens mais coisas para admirar do que para desprezar.»
 
…«E a peste cada um a traz consigo, porque ninguém, sim, ninguém no mundo, está imune. E é necessário vigiarmo-nos constantemente para não sermos levados num minuto de distracção a respirar na cara de alguém e a pegar-lhe a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto, a saúde, a integridade, a pureza, se preferirem, é um efeito da vontade, e de uma vontade que nunca deve deixar de exercer-se. O homem honesto, o que não infecta ninguém, é aquele que se distrai o menos possível.
 
«Sim, é fatigante ser-se um patife. Mas é ainda mais fatigante não querer ser um patife. É por isso que toda a gente está fatigada, porque toda a gente o é um pouco. Mas é por isso também que alguns conhecem tão fundo cansaço que só a morte os poderá libertar dele.»
 
 
 
albert camus
primeiros cadernos
caderno n.º 5 setembro 1945/abril 1948
trad. não disponível
livros do brasil
1973




27 maio 2020

albert camus / mediterrâneo



I
Ao olhar ausente das janelas, a manhã ri
Com todos os seus dentes azuis e rebrilhantes.
Amarelas, verdes e vermelhas,
Às varandas ondulam as cortinas.
Jovens de braços nus estendem roupa.
Um homem, a uma janela, tem na mão uma luneta.
Manhã clara, esmaltada de mar
Pérola latina do alvor do lírio:
                Mediterrâneo!

Outubro de 1933



albert camus
cadernos de albert camus II
escritos de juventude
trad. josé carlos gonzalez
livros do brasil
1972






03 dezembro 2019

albert camus / também é importante o tema da comédia



Maio de 1935

Também é importante o tema da comédia. O que nos protege das maiores dores, é o sentimento de estarmos abandonados e sós, mas não tão sós no entanto para que os «outros» não nos «considerem» no meio da nossa dor. É nesse sentido que os nossos minutos de felicidade são por vezes aqueles em que o sentimento de abandono nos sufoca e nos arrasta para uma tristeza sem fim. É neste sentido também que muitas vezes a felicidade não é mais que o sentimento compadecido da nossa infelicidade.

Admirável para os pobres – Deus colocou a complacência ao lado do desespero como o remédio ao lado da enfermidade.



albert camus
primeiros cadernos
trad. não disponível
livros do brasil
1973





12 junho 2018

albert camus / não nos separarmos do mundo.



Maio

Não nos separarmos do mundo. Não se perde a vida quando a colocamos à luz do dia. Todo o meu esforço, em todas as posições e desgraça, as desilusões, é para recuperar os contactos. E mesmo nesta tristeza que há em mim, que desejo de amar e que inebriamento apenas perante a visão de uma colina na aragem do fim da tarde.

Contactos com o verdadeiro, a natureza em primeiro lugar, e depois a arte daqueles que compreenderam, a minha arte se a consigo alcançar. De contrário, a luz e a água e a embriaguez estão na minha frente, e os lábios húmidos do desejo.

Desespero sorridente. Sem saída, mas que exerce sem cessar um domínio que se sabe inútil. O essencial: não nos perdermos, e não perder aquilo que, de nós, dorme no mundo.


albert camus
primeiros cadernos
caderno nr. 1 (maio de 1935-setembro de 1937)
trad. antónio quadros (?)
livros do brasil
1973






16 maio 2018

albert camus / todos traíram…




Todos traíram, aqueles que incitavam à resistência e aqueles que falavam da paz. Eles aí estão, tão dóceis e mais culpados que os outros. E jamais o indivíduo esteve tão só diante da máquina de fabricar mentiras. Ele pode ainda desprezar e lutar contra o seu desprezo. Se não tem o direito de se afastar e de desprezar, conserva o de julgar. Nada pode sair do humano, da multidão. A traição seria crer o contrário. Morre-se só. Todos vão morrer sós. Que ao menos o homem só conserve aqui o poder do seu desprezo e de escolher na pavorosa experiência o que serve para a sua própria grandeza.

Aceitar a experiência e tudo o que ela comporta. Mas jurar apenas cumprir na menos nobre das tarefas o mais nobre dos gestos. E a base da nobreza (a verdadeira, que é a do coração) é o desprezo, a coragem e a profunda indiferença.


albert camus
primeiros cadernos
caderno nr. 3 (abril 1939-fevereiro 1942)
trad. antónio quadros (?)
livros do brasil
1973






12 janeiro 2011

albert camus / os desinteressados






Durante milénios o mundo foi semelhante a essas pinturas italianas da Renascença onde, sobre as lajes frias, são torturados homens enquanto outros olham para outro lado na distracção mais perfeita. O número dos «desinteressados» era vertiginoso em comparação com o dos interessados. O que caracterizava a história era a quantidade de pessoas que não se interessavam pela desgraça dos outros. Algumas vezes os desinteressados também se tornavam vítimas. Mas passava-se tudo no meio da distracção geral e uma coisa compensava a outra. Hoje toda a gente faz menção de se interessar. Nas salas do palácio as testemunhas voltam-se de súbito para o flagelado.








albert camus
cadernos III
(caderno nr. 6 1948/1951)
trad. antónio ramos rosa
livros do brasil
1966







28 outubro 2008

albert camus /cadernos















Peste… «E de cada vez que li uma história de peste, do fundo de um coração envenenado pelas suas próprias revoltas e pelas violências dos outros, um grito claro se ergueu dizendo que no entanto havia nos homens mais coisas para admirar do que para desprezar.»
… «E a peste cada um a traz consigo, porque ninguém, sim, ninguém no mundo, está imune. E é necessário vigiarmo-nos constantemente para não sermos levados num minuto de distracção a respirar na cara de alguém e a pegar-lhe a infecção. O que é natural é o micróbio. O resto, a saúde, a integridade, a pureza, se preferirem, é um efeito da vontade, e de uma vontade que nunca deve deixar de exercer-se. O homem honesto, o que não infecta ninguém, é aquele que se distrai o menos possível.
Sim, é frequente ser-se um patife. Mas é ainda mais fatigante não querer ser um patife. É por isso que toda a gente está fatigada porque toda a gente o é um pouco. Mas é por isso também que alguns conhecem tão fundo cansaço que só a morte os poderá libertar dele.»




albert camus
cadernos III
(caderno nr. 5 1948/1951)

trad. antónio ramos rosa
livros do brasil
1966




10 setembro 2007

albert camus, cadernos III



Alexandre Blok,


«Oh se soubésseis crianças
as trevas e o frio dos dias que hão-de vir.»

e ainda:

«Como é penoso andar por entre os homens,
Fingir ainda existir.»

e ainda:

«Somos todos infelizes. A nossa pátria preparou-nos um terreno para as paixões e os dissídios. Cada um de nós vive por trás de uma muralha da China desprezando-se mutuamente. Os nossos verdadeiros inimigos são os popes, a voka, a coroa, os polícias, ocultando os seus rostos e excitando-nos uns contra os outros. Esforçar-me-ei por esquecer… todo este atoleiro para se chegar a ser um homem e não uma máquina de incubar o ódio…

… Só amo a arte, as crianças e a morte.»

Id. Perante a ignorância e o esgotamento dos pobres:

«O meu sangue gela de vergonha e de desespero. Só há vazio, maldade, cegueira, miséria. Só uma compaixão total pode produzir uma mudança… Reajo assim por que a minha consciência não está tranquila… Sei o que devo fazer: dar todo o meu dinheiro, pedir perdão a toda a gente, distribuir os meus bens, o meu vestuário… Mas não posso… não quero… »

«Ó minha querida, minha bem amada ralé!»

«O que está nos confins da arte não pode ser amado» e no entanto: «Nós morremos todos, mas a arte fica.»







albert camus
cadernos III
(caderno nr. 6 abril 1948/Março 1931)
trad. antónio ramos rosa
livros do Brasil
1966