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14 março 2024

manuel resende / numa esquina numa retrete

 
 
 
Vêm-me de lá, de muito antigamente, umas dores no
      coração quando
O tempo me atravessa inutilmente o peito
E cada segundo se espeta carniceiro em mim em brasa
     antes de passar
Rápido e leve
Para o outro lado que não quero ver.
A noite onde mergulhamos, essa noite comprida, é de
     dentro que nos fala,
Como o mar já nos pulmões do náufrago.
Outros cantaram (e se calhar eu também) o troar das
     armas, a bela fúria das tempestades
O Ferro e o Fogo e o Juízo Final, o Deus dos Exércitos!
Mas que beleza pode haver
Em morrermos como cães ingurgitados de ódio, com as
     calças sujas de medo,
Numa esquina, numa retrete ou numa igreja?
O passado empurra-nos para a frente num metro a
     abarrotar
Os enjoados correm para o vómito.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



13 abril 2023

manuel resende / a parteira da história

 



 
Já nem sequer se consegue amar nem odiar a parteira da
     História e, vendo bem, que nos resta senão o humilde
     gosto de saber o trabalho bem feito quando o há,
De escovar a mão por fim preguiçosa na cadeira acabada?
Quanto a corpo, temos conversado, menino mimado
     sempre a pedir atenção e médicos e cama de dormir.
De repente, caímos em nós, dentro de nós, e não há nada
     lá dentro
A que nos agarrarmos.
 
 
 
manuel resende
em qualquer lugar seguido por
o pranto de bartolomeu de las casas
poesia reunida
edições cotovia
2018
 



28 abril 2022

manuel resende / um homem pela rua n.º 2

 
 
Vai um homem pela rua cheia de gente.
O mesmo homem, a mesma rua,
Dum poema já antigo.
Volta-se de repente e que vê?
Umas figuras que já não pode resgatar,
A afastarem-se para o passado
Ou o futuro.



manuel resende
o mundo clamoroso, ainda
poesia reunida
edições cotovia
2018




16 maio 2021

manuel resende / epigrama

 
 
Não não foi pela usura que veio o Duce
Nem por casa de pedra fresca nem pelo fresco na pedra
Foi pela ganância pelo árduo
Exercício espiritual das transferências de fundos
Foi pelas costas da Etiópia, suor destilado no norte d’ áfrica
Por um exército de diarreias e palavrões nas camaratas
Não o Duce não veio pela usura
Mas pelo medo das províncias
Mas para que os escravos digerissem
Diligentemente a fome pois a fome
É o pão mais duro de roer.
 
 
manuel resende
natureza morta com desodorizante
poesia reunida
edições cotovia
2018





30 março 2021

manuel resende / voltar para casa

 
 
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
E seguir o rasto das árvores no chão,
Pelo caminho conhecido, com o coração mirrado nas mãos
E as mãos nos bolsos como um apontamento antigo?
Não haverá outra história para viver, um jornal para cada um,
E súbita a esperança a queimar os lábios, a palpitar na boca,
Pronta a saltar e a arder todo o corpo?
Mas porque tem a pessoa de voltar para casa
Cabisbaixa?
 
 
manuel resende
em qualquer lugar
poesia reunida
edições cotovia
2018





26 setembro 2020

manuel resende / chico 2

 
 
Morrem à minha volta.
Sem longas doenças, fulminados.
Equipados apenas com o corpo.
Não quiseram que a alma morresse
Antes deles.
 

 
manuel resende
em qualquer lugar
poesia reunida
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2018
 






06 maio 2020

manuel resende / vida



Vida passajada, alinhavada
Cerzida, em ponto de cruz, ou de estrada,
Ou de pérola, tenho-te tratado
Com todos os cuidados –
E tu, madrasta, sempre
Logo num ai devoras o almoço que eu
Preparei com tanto amor, a manhã inteira.
Sempre a começar de novo, sempre a dar-me outra manhã,
Quando a de ontem já me bastava para toda a vida.


manuel resende
poesia reunida
edições cotovia
2018










14 março 2020

manuel resende / diário de hannah arendt



A filósofa Hannah Arendt
Está a descascar cebolas na cozinha.
Pergunta: “Sabes dizer-me
O horário dos correios?”

E a amiga:
“Tu estás apaixonada…”


manuel resende
poesia reunida
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2018









17 fevereiro 2020

manuel resende / uma palavra


Longe de mim querer corromper a juventude,
É um trabalho que sobreleva as
Minhas capacidades.
Antes cicuta.
Mas tenho de explicar o sentido
Da palavra “desesperança”.

É uma esperança negativa.
A gente senta-se num cais
E deixa o sol trabalhar.
O sol minúsculo, isto é, o calor na pele.
Chamo a isto a experiência mínima.

Feito isto:
Venha de lá então
Essa catástrofe.



manuel resende
poesia reunida
edições cotovia
2018