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02 abril 2024

louise glück / teoria da memória

 
 
 
Há muito, muito tempo, antes de ser artista com tormentos, afligindo-me o desejo, mas incapaz de formar apegos duradouros, muito antes disto, eu era um glorioso governante que unia todo um país dividido – foi o que me disse uma adivinha que me leu a sina. Há grandes coisas, disse ela, à tua frente, ou talvez atrás de ti: é difícil ter a certeza. E todavia, acrescentou, que diferença faz? Neste preciso instante és uma criança de mão dada com uma adivinha que lê a sina. Tudo o resto é hipótese e sonho.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021




15 setembro 2023

louise glück / vésperas

 



 
Sei o que planeavas, o que querias fazer ao ensinar-me
a amar o mundo, a fazer com que eu não pudesse
nunca abandoná-lo, afastá-lo para sempre –
ele está em todo o lado: se fecho os olhos,
o canto dos pássaros, o perfume de lilás na Primavera nascente, o
     perfume das rosas de Verão:
e tu queres tirar-mo, queres levar cada flor, cada união à terra –
porque haverias d me ferir, porque haverias de me querer
desolada no final, a menos que me quisesses tão faminta de esperança
que eu recusaria ver que finalmente
nada me fora deixado em herança, acreditando antes que
no fim de tudo só tu me foras deixado.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020




27 junho 2023

louise glück / telescópio

 



 
Há um momento após desviares o olhar
em que te esqueces de onde estás
pois tens vivido, parece,
noutro lado, no silêncio do céu nocturno.
 
Deixaste de estar aqui no mundo.
Estás num lugar diferente,
um lugar onde a vida humana não tem sentido.
 
Não és uma criatura num corpo.
Existes como as estrelas existem,
participando na sua quietude, na sua imensidão.
 
Até que volta a estar no mundo.
De noite, numa colina fria,
a desmontar o telescópio.
 
Só depois percebes
que não é falsa a imagem
mas a relação.
 
Vês de novo como cada coisa
fica tão longe de todas as outras.
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




03 abril 2023

louise glück / parábola



 
Primeiro prescindimos dos bens do mundo, como ensina São
     Francisco,
para não se distraírem as nossas almas
com ganhos ou perdas, e também para
os nossos corpos se sentirem livres de mover-se
facilmente entre as montanhas, e coube-nos então discutir
em que direcção ou onde viajar, sendo a segunda questão
o termos ou não um propósito, contra o qual
muitos alegámos com afinco que tal propósito
equivalia aos bens do mundo, implicando uma limitação ou óbice,
ao passo que outros diziam ser tal palavra que nos consagrava
peregrinos em vez de vagabundos: nos nossos espíritos, a palavra
     traduzia-se
num sonho, uma coisa de demanda, de modo que, concentrando-nos,
     a veríamos
talvez a reluzir entre as pedras, em vez de
passarmos por ela às cegas; debatemos
também à saciedade cada um dos assuntos consequentes, a esgrimir
     argumentos,
de modo que, diziam alguns, íamos ficando menos flexíveis e mais
     resignados,
como soldados numa guerra inútil. E a neve caiu sobre nós e o vento
     soprou
e a seu tempo amainou – onde estivera a neve surgiram muitas
     flores,
e, onde brilhavam as estrelas, ergueu-se o Sol sobre o horizonte
     de árvores
de modo que voltámos a ter sombras; o que aconteceu muitas vezes.
Também chuvas, também cheias às vezes, também avalanches,
     em que
alguns de nós se perdiam, e recorrentemente tínhamos a impressão
de que chegáramos a um acordo, com os cantis
alçados aos ombros; mas sempre esse momento passava, e assim
(muitos anos depois) continuávamos naquela primeira fase,
     ainda
a preparar-nos para começar uma viagem, mas em todo o caso
     estávamos mudados;
reparávamos nisso uns nos outros; tínhamos mudado, embora
nunca nos movêssemos, e um disse, ah, vejam como envelhecemos,
     a viajar
apenas do dia à noite, nem para frente nem para os lados, o que
     estranhamente
parecia milagroso. E quem acreditava que devíamos ter um propósito
acreditou que era esse o propósito, e quem achava que devíamos
     permanecer livres
para encontrar a verdade achou que ela se nos revelava.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021



 

13 dezembro 2022

louise glück / encruzilhada




 

 
Corpo meu, agora que não viajaremos juntos por muito mais tempo,
começo a sentir por ti uma renovada ternura, muito crua e
          desconhecida,
como aquilo que recordo do amor quando era jovem –
 
um amor que tantas vezes foi tolo nos seus objectivos,
mas nunca nas suas escolhas, nos seus ardores.
Demasiado exigido à partida, demasiado o que não pôde ser
          prometido –
 
A minha alma tem sido tão temerosa, tão violenta:
perdoa a sua brutalidade.
Como se fosse essa alma, a minha mão desliza cautelosa por ti,
 
não querendo ofender,
embora ansiosa, enfim, por conseguir expressar-se enquanto
          substância:
 
não é da Terra que irei sentir falta,
é de ti que irei sentir falta.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021



 

11 julho 2022

louise glück / a janela aberta

 
 
Um velho escritor ganhara o hábito de escrever a palavra FIM num papel antes de começar as suas histórias, posto o que juntava uma resma de folhas, normalmente fina no Inverno quando a luz do dia era breve, e espessa, por comparação, no Verão quando o seu pensamento se tornava outra vez solto e associativo, expansivo como o pensamento de um jovem. Independentemente da quantidade, colocava essas folhas em branco sobre a última, escondendo-a de tal forma. Só então é que lhe vinha a história, casta e refinada no Inverno, mais livre no Verão. Com este método tornara-se um mestre reconhecido.
 
Trabalhava de preferência numa divisão sem relógios, confiando na luz para lhe dizer quando terminava o dia. No Verão, gostava da janela aberta. Então como é que, no Verão, o vento de Inverno entrava nessa assoalhada? Pois é, gritou ele ao vento, é isto que me tem faltado, esta determinação e rispidez, esta surpresa – Oh, se o pudesse fazer, seria um deus! E deitou-se no chão frio do escritório, a ver o vento voltar os papéis, a misturar o escrito e o que estava por escrever, entre eles o fim.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021



13 abril 2022

louise glück / prisma

 
 
13
 
Chuva de Primavera, depois uma noite de Verão.
Uma voz de homem, depois uma voz de mulher.
 
Crescias, eras fulminada por um raio.
Quando abrias os olhos, estavas ligada para sempre ao teu verdadeiro
          amor.
 
Só acontecia uma vez. Depois tratavam de ti,
a tua história acabava.
 
Acontecia uma vez. Ser fulminada era como ser vacinada,
ficavas imune para o resto da vida,
ficavas ao abrigo de tudo.
 
A menos que o choque não fosse suficientemente profundo.
Então não ficavas vacinada, mas viciada.
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




28 janeiro 2022

louise glück / caminhando à noite

 
 
Agora que é velha,
os homens não metem conversa com ela,
por isso as noites estão livres,
as ruas que ao crepúsculo eram tão perigosas
são agora tão seguras quanto o prado.
 
À meia-noite, a povoação está serena.
Os muros de pedra reflectem o luar;
nos passeios, é possível escutar os ruídos nervosos
dos homens estugando o passo para casa, para as suas mulheres e
   mães; a esta hora tardia,
todas as portas estão trancadas, as janelas às escuras.
 
Quando eles passam, não reparam nela.
É como uma folha de erva seca num campo de gramíneas.
Por isso, os seus olhos, habituados a não descolarem do chão,
são agora livres para passear onde quiserem.
 
Quando faz bom tempo e está cansada das ruas, caminha
pelos campos que demarcam o fim da povoação.
Às vezes, quando é Verão, chega a ir até ao rio.
 
Os jovens costumam encontrar-se não muito longe daí,
mas agora o rio está raso por falta de chuva, por isso
a margem está deserta –
 
Na altura, faziam-se piqueniques.
Os rapazes e as raparigas acabavam por formar pares;
Passado algum tempo, metiam-se pelos recessos dos bosques
que o crepúsculo sempre visita –
 
Agora, não se veria vivalma nos bosques –
tendo os corpos nus encontrado outros lugares para se esconder.
 
No rio, a água é só suficiente para que céu nocturno
desenhe padrões nas pedras cinzentas. A Lua brilha,
uma pedra entre muitas outras. E o vento levanta-se;
sopra as pequenas árvores que crescem à beira do rio.
 
Quando olhamos para um corpo, vemos uma história.
Assim que esse corpo deixa de ser observado,
a história que tentava contar acaba por se perder –
 
Em noites como esta, ela chega a caminhar até à ponte
antes de voltar para trás.
O cheiro do Verão persiste em todas as coisas.
E o corpo dela começa a parecer outra vez o corpo que fora o seu
   em jovem,
reluzindo sob as roupas ligeiras de Verão.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021




01 novembro 2021

louise glück / o passado

 
 
Débil luz surgindo no céu
de súbito entre
dois galhos de pinheiro, as finas agulhas
 
recortadas agora sobre a superfície radiosa
e acima disto
o alto céu emplumado –
 
Cheira o ar. Este é o cheiro do pinheiro branco,
sobretudo intenso quando o vento passa por ele
e o som que faz é igualmente bizarro,
como o som do vento num filme –
 
Sombras movendo-se. Produzem as cordas
o som costumeiro. O que ouves agora
será o som do rouxinol, chordata,
o pássaro macho a cortejar a fêmea –
 
As cordas agitam-se. A rede
balouça no vento, bem
amarrada entre dois pinheiros.
 
Cheira o ar. Este é o cheiro do pinheiro branco.
 
É a voz da minha mãe que ouves
ou tão-só o som que fazem as árvores
quando o ar passar por elas
 
pois que som faria
o passar por nada?
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021






26 agosto 2021

louise glück / um dia quente

 
 
Hoje, o sol brilhava,
por isso a minha vizinha lavou as suas camisas de noite no rio –
regressa a casa com tudo dobrado numa cesta,
radiante, como se tivesse acabado de ganhar
mais dez anos de vida. A limpeza fá-la feliz –
diz-nos que podemos recomeçar tudo outra vez,
não precisamos de ficar presos aos erros do passado.
 
Uma boa vizinha – cada uma de nós deixa a outra
entregue à sua intimidade. Ainda agora
ela se pôs a cantar sozinha, pendurando a roupa lavada e húmida no
    arame.
 
Pouco a pouco, dias como este
irão parecer normais. Mas o Inverno foi duro:
as noites a começarem cedo, o amanhecer escuro,
com uma chuva cinzenta e persistente – meses disso,
e depois a neve, como silêncio caindo do céu,
obliterando árvores e jardins.
 
Hoje, tudo isso já vai longe para nós.
Os pássaros estão de volta, a chilrear em torno das sementes.
A neve derreteu; as árvores de fruto estão carregadas de nova e
    aveludada colheita.
Uns quantos casais até passeiam pelo prado, fazendo as promessas
    que são as deles.
 
Deixamo-nos ficar ao sol e o sol cura-nos.
Não tem pressa de ir embora. Permanece suspenso sobre nós, imóvel,
como um actor satisfeito com o seu acolhimento.
 
A minha vizinha fica em silêncio por instantes,
a olhar fixamente para a montanha, a ouvir os pássaros.
 
Tantas peças de roupa, de onde terão vindo?
E a minha vizinha ainda está lá fora,
a pendurá-las no arame, como se a cesta jamais ficasse vazia –
 
Continua cheia, nada acabou ainda,
embora o Sol comece a deslocar-se mais abaixo do céu:
ainda não é Verão, lembremo-nos, é só o princípio da Primavera;
o calor ainda não veio para ficar, e o frio aproxima-se –
 
Ela sente isso, como se a última peça de roupa branca congelasse nas
    suas mãos.
Ela olha para as mãos – vê como estão velhas. Não é o princípio, é
    o fim.
E os adultos, esses, já morreram todos.
Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021




21 julho 2021

louise glück / utopia

 
 
Quando parar o comboio, disse a mulher, tens de o apanhar. Mas como é que eu sei, perguntou a criança, que é o comboio certo? Será o comboio certo, disse a mulher, porque é a altura certa. Um comboio aproximou-se da estação; a chaminé baforava nuvens de fumo acinzentado. Estou tão assustada, pensa a criança, apertando ao peito as tulipas amarelas que irá oferecer à avó. O seu cabelo tinha tranças apertadas para aguentar na viagem. Depois, sem uma palavra, apanha o comboio, de onde vem um som estranho, não numa língua como a que ela fala, mais parecido com um gemido ou um choro.
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021




02 julho 2021

louise glück / matinas

 
 
O que é para ti o meu coração
se o partes tantas vezes,
como dedicado jardineiro estudando
a sua nova espécie? Experimenta
noutras coisas: como posso eu viver
em colónias, como gostarias, se me impões
uma quarentena de angústia, separando-me
dos membros saudáveis da
tua própria tribo: não fazes isto
com o jardim, não discriminas
a roa doente; deixa-la agitar as folhas
afáveis e infestadas no
rosto das outras rosas, e os minúsculos afídios
saltam de planta em planta, provando uma vez mais
que eu sou a mais irrelevante das tuas criaturas, depois
do próspero afídio e da rosa trepadeira. Pai,
tu que és a causa da minha solidão, alivia
pelo menos a minha culpa; levanta
o estigma do isolamento, a menos
que seja teu desígnio tornares-me
de novo e para sempre sã, tal como eu era
sã e plena na minha infância equivocada,
ou então antes, quando estava sob o coração de minha mãe
batendo leve, ou antes ainda,
em sonho, como um ser
primeiro que nunca morre.
 
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020





01 junho 2021

louise glück / a estrela da tarde

 
 
Hoje, pela primeira vez em muitos anos,
surgiu-me de novo
uma visão do esplendor da terra:
 
no céu do entardecer
a primeira estrela pareceu
tornar-se mais brilhante
enquanto a terra escurecia
 
até já não poder ficar mais escura.
E a luz, que era a luz da morte,
pareceu devolver à terra
 
o seu poder de consolo. Não havia
outras estrelas. Apenas aquela
cujo nome eu conhecia
 
pois na minha outra vida a
ofendera: Vénus,
estrela da tarde,
 
a ti dedico
a minha visão, já que nesta superfície vazia
 
derramaste luz suficiente
para tornar o meu pensamento
de novo visível.
 
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020






20 maio 2021

louise glück / o cavalo e o cavaleiro

 
 
Era uma vez um cavalo, e sobre o cavalo um cavaleiro. Que elegantes pareciam no sol do Outono, aproximando-se de uma estranha cidade! As pessoas apinhavam-se nas ruas ou chamavam de altas janelas. As velhas sentavam-se entre vasos de flores. Mas quem olhasse em volta em busca de outro cavalo ou outro cavaleiro, olharia em vão. Meu amigo, disse o animal, porque não me abandonas? Sozinho, podes orientar-te por aqui. Mas abandonar-te, disse o outro, seria deixar para trás uma parte de mim, e como posso fazê-lo se não sei que parte és?
 
 
 
louise glück
noite virtuosa e fiel
tradução de margarida vale de gato
relógio d´água
2021





31 outubro 2014

louise glück / paisagem



1.

O sol põe-se por detrás das montanhas,
a terra arrefece.
Um estranho amarrou o cavalo a um castanheiro despido.
O cavalo está tranquilo – volta de súbito a cabeça
ao ouvir, na distância, o som do mar.

Faço aqui a minha cama por uma noite,
Estendo a manta mais pesada sobre a terra húmida.

O som do mar –
quando o cavalo volta a cabeça, ouço-o.

No caminho, entre os castanheiros despidos,
um pequeno cão segue o dono.

O pequeno cão – não era ele que costumava adiantar-se,
forçar a trela, como que para mostrar ao dono
aquilo que vislumbra além, além no futuro? –

o futuro, o caminho, chama-lhe o que quiseres.

Por detrás das árvores, ao poente, é como se um grande fogo
ardesse entre duas montanhas
 de tal modo que a neve do mais alto precipício
parece, por momentos, arder também.

Escuta: no fim do caminho, o homem chama.
A voz dele faz-se agora muito estranha,
é a voz de alguém a chamar o que não vê.

Ele chama, uma e outra vez, entre os castanheiros escuros.
E o animal responde por fim,
indistintamente, de uma enorme distância,
como se isso que tememos
não fosse terrível.

Crepúsculo: o estranho desamarrou o cavalo.

O som do mar –
Agora uma lembrança apenas.



louise glück
paisagem
tradução de rui pires cabral
telhados de vidro
nr. 12 maio 2009
averno
2009




19 novembro 2010

louise glück / paisagem





2.


O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.

Era um tempo
de espera, de acção suspensa.

Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes

não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.

Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.





louise glück
paisagem
tradução de rui pires cabral
telhados de vidro
nr. 12 maio 2009
averno
2009