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10 setembro 2024

wislawa szymborska / ao coração num domingo

 
 
 
Eu te agradeço, coração,
a diligência, porque te esfalfas
sem adulações, sem prémios,
numa inata urgência.
 
Tens setenta merecimentos por minuto.
Cada tua contracção
é como impulso a um barco
no mar alto
em rota de circum-navegação.
 
Eu te agradeço, coração,
por uma vez e outra ainda
me ires retirando de um todo
mesmo no sonho separada.
 
E zelas por que não sonhe um voo fundo
um voo tão fundo
que torne desnecessárias as asas.
 
Eu te agradeço, coração,
por mais uma vez ter acordado,
e por, embora domingo,
dia de descanso,
sob as costelas
ir o frenesim normal das sextas-feiras.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



09 maio 2024

wislawa szymborska / poema para

 
 
Houve uma vez. Criou o zero.
Num incerto país. À luz de estrela
já porventura extinta. Entre datas
nas quais alguém jurou. Sem um nome,
polémico que fosse. Não deixando
abaixo do seu zero uma ideia simples e dourada
sobre a vida, que é aquilo que é. A lenda ao menos
de ter um dia acrescentado um zero à rosa
que colheu e feito um ramalhete.
De que, estando a morrer, partiu para o deserto
num camelo de cem bossas. De ter adormecido
à sombra das palmas da vitória. De que acordará
quando estiver já tudo contado
até ao mais pequeno grão de areia. Que homem este!
Interstício entre facto e pensamento
Passou despercebido. Refractário
a todos os destinos. Repelindo
cada silhueta que lhe dou.
Sobre ele se adensou um silêncio sem cicatriz na voz.
Transfigurou-se a ausência em horizonte.
O zero escreve-se sozinho.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998




 

01 abril 2024

wislawa szymborska / poça de água

 



 
Recordo bem este medo da infância.
Evitava as poças,
sobretudo as novas, após a chuva.
Afinal, uma delas poderia não ter fundo,
ainda que parecesse igual às outras.
 
Ponho o pé e, de súbito, afundar-me-ei,
voando para baixo,
cada vez mais baixo,
rumo às nuvens reflectidas
ou talvez mais além.
 
Depois a poça secar-se-á,
fechar-se-á por cima de mim,
e eu para sempre trancada – onde –
ficarei com um grito não repercutido à superfície.
 
Só mais tarde compreendi que
nem todas as más aventuras
cabem nas regras do mundo
e mesmo que o quisessem,
não poderiam acontecer.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 




28 setembro 2023

wislawa szymborska / sorrisos

 
                                                              
 
Mais alma põe o mundo em ver do que em ouvir.
Os homens de estado têm que sorrir.
Sorrir é sinal de que mantêm a calma.
Seja o jogo ínvio, os interesses outros,
incerto o final, é sempre um consolo
ver a dentadura branca e cordial.
 
Têm que gentis mostrar os seus rostos,
nas salas de encontro, lajes de aeroportos.
Moverem-se lestos, parecerem felizes.
Este acolhe aquele, diz adeus ao outro.
Uma cara risonha é sempre precisa
para o ajuntamento, para a objectiva.
 
Os dentistas, tratando os diplomatas,
são o garante de triunfos espantosos.
Caninos fidedignos, condignos incisivos,
não podem faltar nos transes perigosos.
Os tempos não vão ainda de feição
a que se possa ver nas faces uma simples tristeza.
 
Pensa quem sonha, que a humanidade fraterna de certeza
há-de mudar o mundo na terra dos sorrisos.
Eu cá duvido e, sejamos mais precisos, os estadistas
não deviam rir-se assim e dar tanto nas vistas.
Só às vezes: é primavera, é outono,
sem crispações nem urgência escusada.
É triste por sua natureza o ser humano.
A minha esperança é vê-la um dia revelada.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 




28 junho 2023

wislawa szymborska / engano

 
 
Ressoou na galeria de retratos o telefone,
ressoou à meia-noite na sala vazia;
se alguém aqui dormisse logo acordaria,
mas aqui só há profetas insones,
só rainhas a empalidecerem para a lua
e olhando o que lhes é igual sem respirar;
e a aparentemente agitada mulher do usurário
para aquele preciso objecto, no armário, a tilintar –
mas não, não pões de lado o leque
e fica como os outros suspensos no seu ócio.
Eméritos ausentes, em pêlo ou de armadura,
passam pelo alarme nocturno a distracção
na qual eu juro haver mais humor negro
do que se o próprio castelão saltasse da moldura
(de resto, for o silêncio nada mais lhe soa nos ouvidos).
E que interessa se alguém na cidade há já bocado
aplica ingenuamente o bocal à orelha
porque marcou o número errado? Só se engana quem está vivo.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



24 outubro 2022

wislawa szymborska / paisagem com grão de areia




Chamamos-lhe grão de areia.
E ele a si nem areia nem grão.
Passa muito bem sem nome
genérico, específico,
duradouro, efémero,
erróneo ou real.
 
Nada é para ele o nosso olhar, o nosso tacto.
Não se sente observado e tocado.
E se caiu no parapeito da janela
é peripécia nossa, não dele.
Para ele é o mesmo cair aqui ou acolá,
sem a certeza de já ter caído
ou de estar ainda a cair.
 
Da janela há uma bonita vista sobre o lago
mas esta vista não se vê a ela própria.
Informe e descolorido,
inodoro e sem voz
e sem dor se lhe apresenta o mundo.
 
Como que desfundadamente ao fundo do lago
e desmarginadamente às suas margens.
Nem seco nem molhado à sua água,
nem singular nem múltiplo às suas ondas,
marulhando surdas ao próprio marulhar
ao redor de pedras nem grandes nem pequenas.
 
E tudo sob um céu de natureza inceleste
onde se põe um sol nunca poente
escondendo-se sem se esconder atrás de nuvem inconsciente.
Impele-a o vento sem outra razão
a não ser a de que venta.
 
Passa um segundo.
Dois segundos.
E um terceiro.
Mas são só nossos estes três segundos.
 
Precipitou-se o temo como mensageiro com notícia premente.
Mas a comparação é apenas nossa.
A figura inventada, a pressa insinuada,
e a notícia inumana.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 



 

12 julho 2022

wislawa szymborska / uma gente

 
 
Uma gente em fuga de outra gente,
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens.
 
Deixam para trás um tal seu tudo,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos, justamente nos quais o fogo se mira.
 
Levam às costas os cântaros e as trouxas,
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.
 
É em silêncio que alguém desfalece,
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
e alguém sacode o filho morto.
 
Nunca é pela estrada que têm à frente,
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
ao alto, um avião errante rodopia.
 
Oportuna seria a invisibilidade,
uma parda rochosidade,
ou ainda melhor a inexistência
durante um pouquinho ou por mais tempo.
 
Mais ainda está por acontecer, apenas onde e o quê.
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quando e quem,
de que forma e com que intenções.
Se puder escolher,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 




26 janeiro 2022

wislawa szymborska / instante

 
 
Vou pela ladeira da colina verdejante.
Erva, florinhas na erva,
como nas gravuras para crianças.
O céu enevoado, a ficar azul.
A vista para as outras colinas propaga-se no silêncio.
 
Como se por aqui não tivesse havido nenhuns câmbricos, silúricos,
rochas rosnando umas às outras,
abismos sublevados,
nenhumas noites em chamas
nem dias em baforadas de trevas.
 
Como se por aqui não se tivessem deslocado planícies
em febris delírios
e gélidos calafrios.
 
Como se somente em outro lugar se tivessem revoltado os mares
e se rompessem as orlas dos horizontes.
 
São nove e trinta, hora local.
Tudo no seu lugar e em impecável concórdia.
No vale, a pequena ribeira na qualidade de pequena ribeira.
A vereda sob a forma de vereda desde sempre e para sempre.
 
O bosque sob o pretexto de bosque por toda a eternidade, ámen.
No alto, os pássaros no papel de pássaros em voo.
 
Até onde a vista alcança, reina o instante.
Um desses instantes terrenos
aos quais se pede que perdurem.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 




02 novembro 2021

wislawa szymborska / o primeiro amor

 
 
Dizem
que o primeiro amor é o mais importante.
É muito romântico
mas não é o meu caso.
 
Algo entre nós houve e não houve,
deu-se e perdeu-se.
 
Não me tremem as mãos
quando encontro pequenas lembranças,
aquele maço de cartas atadas com um cordel,
se ao menos fosse uma fita.
 
O nosso único encontro, passados anos,
foi uma conversa de duas cadeiras
junto a uma mesa fria.
 
Outros amores
continuam até hoje a respirar dentro de mim.
A este falta fôlego para suspirar.
 
No entanto, sendo como é,
não lembrado,
nem sequer sonhado,
consegue o que os outros ainda não conseguem:
acostuma-me com a morte.
 
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006





 

23 julho 2021

wislawa szymborska / foto de multidão

 
 
Na foto da multidão
a minha cabeça é a sétima da ponta,
ou talvez a quarta da esquerda
ou a vigésima a contar do fundo;
 
minha cabeça não sei qual,
já não una, já não única,
já semelhante às iguais,
nem de mulher nem de homem;
 
os sinais que ela me dá
são particularmente nulos;
 
talvez a olhe o Espírito do Tempo,
mas ela a ele não o vê;
 
minha cabeça de estatística
alimentada de cabos e de aço,
a mais serena e globalmente;
 
sem vergonha de ser uma qualquer,
sem desespero de ser substituível;
 
como se eu de todo a não tivesse
à parte e ao meu modo;
 
como se tivesse sido escavado um cemitério
cheio de anónimas caveiras
muito razoavelmente conservadas
embora perecíveis;
 
como se ela já lá estivesse,
minha cabeça alheia, qualquer uma,
 
onde, se de algo se recorda,
talvez seja do profundo futuro.
 
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998
 





11 maio 2021

wislawa szymborska / admiração

 
 
Porquê tanto a uma só pessoa?
A esta e não a outra? E que faço eu aqui?
Num dia que dizem terça-feira? Em casa e não em ninho?
Com pele e não com escamas? Com cara e não folha?
Porquê pessoalmente só uma vez?
E logo na Terra? Junto a uma estrela pequena?
Depois de estar ausente tantas eras?
Para além de todos os tempos e algas?
Para lá do pólipo e da medusa?
E logo agora? Para o sangue e os ossos?
Só comigo em mim? Por que
não mas além ou a cem milhas daqui,
ou ontem ou há um século
sentada e olhando o canto escuro
– tal como de focinho erguido de repente
olha um que rosna e a que chamam cão?
 
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





 

01 janeiro 2021

wislawa szymborska / allegro ma non troppo

  

Tu és bela – digo à vida –
mais esplêndida não podias,
de rouxinóis e de rãs,
de formigas e sementes.
 
E tento ser-lhe agradável,
bajulá-la, olhá-la nos olhos.
Sou sempre a primeira a saudá-la,
de humilde expressão na fronte.
 
Vou-lhe saltando ao caminho,
da esquerda, da direita,
e fascinada me elevo,
e de enlevo me estatelo.
 
Que marinho este cavalo!,
que silvestre é esta amora! –
nunca em tal houvera crido
se não tivesse nascido.
 
– Não encontro – digo à vida –
nada a que possa igualar-te.
Ninguém fará outra pinha,
nem melhor, nem menos bem.
 
Louvo-te a generosidade, a criatividade,
a decisão e o rigor –
e mais ainda – e mais além –
a magia – a negra e a branca.
 
Só para não te ofender,
te irritar, descontrolar.
Eu saltito sorridente
há uns bons cem mil anos.
 
Arranho a vida pela bainha de uma folhita:
Terá parado? Ouviria?
Só uma vez, por um momento,
esqueceu-se de para onde ia?
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





21 outubro 2020

wislawa szymborska / platão ou o porquê

 
 
Por obscuros motivos,
em circunstâncias desconhecidas,
o Ser Ideal deixou de ser suficiente a si próprio.
 
Mas poderia durar e durar sem fim,
talhado das trevas, forjado da claridade
nos seus jardins sonolentos sobre o mundo.
 
Por que diabo começou a procurar aventuras
na má companhia da matéria?
 
De que lhe serviram imitadores
falidos, malfadados,
sem perspectivas de eternidade?
 
A Sabedoria coxa
com um espinho cravado no calcanhar?
A Harmonia dilacerada pelas
águas revoltas?
A Beleza
com os seus nada atraentes intestinos?
E o Bem –
para quê a sua sombra
se antes não a tinha?
 
Deve ter havido algum motivo
por mais fútil que pareça,
mas isso não será revelado nem pela Verdade Nua,
ocupada em remexer
no vestuário terreno.
 
E ainda, meu Platão, todos estes poetas horríveis,
aparas varridas pelo vento de debaixo das estátuas,
resíduos do grande Silêncio nas alturas…
 
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006





 

08 maio 2020

wislawa szymborska / filhos da época


Nós somos filhos da época,
a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas
questões diárias, questões nocturnas
são questões políticas.

Queiras tu ou não
os teus genes têm passado político,
a pele matiz político,
os olhos aspecto político.

Os temas que abordas têm ressonância,
o que calas tem expressão
de um modo ou outro na política.

Passeias pela floresta
e dás passos políticos
num chão político.

Também são políticos os versos apolíticos,
e lá no alto a lua resplandece,
a lua já objecto não lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Mas que questão, responde lá, então.
Questão política.

Não tens sequer que ser um ser humano
para adquirires significado político.
Basta-te seres petróleo bruto,
matéria-prima, forragem substancial.

Ou mesa então de reuniões em cuja forma
se apoiaram longos meses:
na qual se negociou a vida ou morte,
quadrada ou redonda.

Pessoas entretanto faleceram,
morreram animais,
casas arderam
e campos tornaram-se bravios
como nos tempos de outrora
muito menos políticos.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998





05 março 2020

wislawa szymborska / invento o mundo



Invento o mundo, segunda edição,
segunda edição corrigida,
no riso, para os idiotas,
no choro, para os melancólicos,
nos pentes, para os carecas,
nos sapatos, para os cães.

Um capítulo:
Fala das Plantas e dos Bichos,
onde para cada espécie
competente dicionário.
Mesmo o mais simples bom dia
que tu trocas com um peixe,
na vida te fortalece,
a ti, ao peixe e a todos.

Este improviso de bosque –
há muito pressentido
e de súbito em palavras acordado!
Esta epopeia de corujas!
Estes adágios de ouriço
compostos
quando estamos convencidos
de que está só a dormir!

O Tempo (capítulo II)
tem direito a intrometer-se
em tudo, seja no bom ou no mau.
E, contudo, o que corrói as montanhas
e afasta os mares e usa
estar presente no giro das estrelas,
não há-de ter o mais pequeno poder
sobre os amantes,
porque nus de mais,
porque abraçados de mais, o espírito
eriçado como pássaro num ombro.

A velhice é só moral
em vida de criminoso.
Por isso todos são jovens!
Sofrer (capítulo III)
não tira o peso ao corpo
e a morte
virá enquanto dormires.

E sonhares,
que afinal nem é preciso respirar,
que o silêncio sem respiração
é boa música,
és pequeno, uma faúlha,
e se te tocam apagas-te.

Morte, só uma assim. Dor maior
experimentaste ao segurar uma rosa,
e terror maior sentiste
vendo a pétala no chão.

Mundo, só um assim. Viver,
só desta maneira. E morrer, como antes visto.
Tudo o resto é como Bach
tocado em serra de circo.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998






23 dezembro 2019

wislawa szymborska / amor à primeira vista



Ambos estão convencidos
que os uniu uma paixão súbita.
É bela esta certeza,
mas a incerteza é mais bela ainda.

Julgam que por não se terem encontrado antes,
nada entre eles nunca ainda se passara.
E que diriam as ruas, as escadas, os corredores
onde se podem há muito ter cruzado?

Gostaria de lhes perguntar
se não se lembram –
talvez nas portas giratórias,
um dia, face a face?
algum «desculpe» num grande aperto de gente?
uma voz de que «é engano» ao telefone?
– mas sei o que respondem.
Não, não se lembram.

Muito os admiraria
saber que desde há muito
se divertia com eles o acaso.

Ainda não completamente preparado
para se transformar em destino para eles,
aproximou-os e afastou-os,
barrou-lhes o caminho
e, abafando as gargalhadas,
lá seguiu saltando ao lado deles.

Houve marcas, sinais,
que importa se ilegíveis.

Haverá talvez três anos
ou terça-feira passada,
certa folhinha esvoaçante
de um braço a outro braço.
Algo se perdeu e encontrou?
Quem sabe se já uma bola
nos silvados da infância?

Punhos de porta e campainhas
onde a seu tempo o toque
de uma mão tocou o outro toque.
As malas lado a lado no depósito.
Talvez acaso até um mesmo sonho
que logo o acordar desvaneceu.

Porque cada início
é só continuação,
e o livro das ocorrências
está sempre aberto ao meio.




wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998