18 dezembro 2024

wislawa szymborska / o amanhecer

 
 
 
Ainda durmo
e entretanto sucedem-se factos.
Clareia a janela,
acinzentam-se as trevas,
surge o quarto do espaço sombrio
e nele tentam firmar-se rastos de luz pálidos e vacilantes.
 
A seguir, sem pressas,
pois é uma cerimónia,
amanhecem as superfícies do tecto e das paredes,
separam-se as formas
umas das outras,
a esquerda da direita.
 
Alvorecem as distâncias entre os objectos,
chilreiam os primeiros clarões
no copo e na maçaneta.
Já não só parece, agora é no seu todo,
aquilo que ontem movido,
o que caiu no chão
e o que se enquadra nas molduras.
Só os pormenores
ainda não deram entrada no campo d avisão.
 
Mas atenção, atenção, atenção,
muito parece indicar que regressam as cores
e mesmo a mais ínfima coisa vai recuperá-las
juntamente com os tons da sombra.
 
Muito raramente isto me espanta, mas deveria.
Habitualmente, acordo na condição da testemunha atrasada,
com o milagre já consumado,
o dia estabelecido
e o amanhecer com mestria em manhã transformado.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 



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