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24 agosto 2024

albano martins / desta varanda, o mar

 
 
 
Quando os peixes se revoltam,
o mar solta as marés vivas
e fica na praia a ver.
 
*
 
Cuando los peces se sublevam
El mar suelta las mareas vivas
Y queda viendo en la playa.
 
 
 
albano martins
desta varanda, o mar
tradução para castelhano de
alfredo pérez alencart
edições simplesmente
2014





22 abril 2024

albano martins / ao fim da tarde

 
 
Acrescentarei agora
ao fim da tarde: escrever
é também
lançar bóias
ao mar (é isso
que se chama
escrever
sobre a água). Ou atirar
em direcção ao sul
algumas garrafas vazias
e sem destinatário. E não haver,
por isso, salvação. Assim
o dizes, ao menos,
e eu acredito.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
 



11 fevereiro 2024

albano martins / espelho

 
 
Há um momento em que o espelho
recusa a imagem. Percebes,
então, que o vazio
é contrário à luz. que o nada
e o salitre são
a outra face da transparência.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
 





17 maio 2023

albano martins / desta varanda, o mar



 
A saudade do cais não é de pedra,
é de água. Que o digam os olhos
dos que partem, dos que ficam…
 
*
 
La saudade del muelle no es de piedra:
es de agua. Que lo digan los ojos
de los que parten, de los que quedan.
 
 
 
albano martins
desta varanda, o mar
tradução para castelhano de
alfredo pérez alencart
edições simplesmente
2014
 



 

04 março 2023

albano martins / preciso de arrumar a casa

 
 
Preciso de arrumar a casa, rever o sistema, brunir
os móveis e o tacto.
Preciso de opor o tempo ao tempo.
O espaço ao espaço.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
os remos escaldantes (1983)
glaciar
2021




26 outubro 2022

albano martins / folhas

 


 

Repara: sem vento, as folhas
são como sono apenas.
Corpos ao relento,
que da morte se esquecem.
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999

 



13 julho 2022

albano martins / quase marinha

 
 
 
Desta luz, mais branca
do que o branco – ou
do que o leite, como diria Safo –,
o que pode dizer-se
é isto: um dia
o céu
acordou sem nuvens e a linha
do horizonte, de tão fresca
e tão nítida
e tão próxima, era o parapeito
onde a infância vivia
debruçada. E era
ali que o voo
das gaivotas começava.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
castália e outros poemas (2001)
glaciar
2021




 

13 dezembro 2021

albano martins / as palavras do pai

 
 
Olha, meu filho, esta
é a árvore
da vida. Crescerás
com ela. Às vezes
nos seus ombros colherás
lágrimas em lugar
de frutos, mas
é nos ramos mais altos
que o sonho
mora e a liberdade
floresce.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
toda a poesia
caderno de argolas (2000-2010)
glaciar
2021




 

22 outubro 2021

albano martins / os muros

 



 
Os muros. Todos
os muros. Um
só muro. E toda
a sede. E todo
o sal
do mar
 
 
no peito.
 
 
 
albano martins
por ti eu daria
as vogais aliterantes (1981-1985)
glaciar
2021






14 maio 2021

albano martins / assim são as algas

 
 
Das palavras
que aprendeste
só uma
não tem tradução.
Quando traduzes
o amor, tu sabes
que é já outro o seu nome.
Assim são as algas
quando apodrecem.
 
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999
 




21 março 2021

albano martins / para um desenho de júlio

 
júlio


O lápis,
o carvão
desenham
a margem fluida
dos cabelos
e das rosas,
os espelhos,
a
nudez dos apelos
 
 
albano martins
inconcretos domínios
edições nova renascença
1980





17 fevereiro 2021

albano martins / compromisso

 
 
Pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. E não deixar
crescer à tua porta
ervas daninhas.
 
 
albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999






 

16 dezembro 2020

albano martins / compêndio

 
 
Dizias: daqui o mar parece
uma tarântula
azul. Eu respondi:
vermelhas
são as flâmulas
das algas e o fermento
das águas.
                  Escrever
é isso: fazer
da vida uma pauta
e um compêndio de espuma.
 
 

albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999




 

17 abril 2020

albano martins / no centro da volúpia



No centro da volúpia, como essência
e forma, como adorno,
contorno e cerne, é que o voo
se fixa, é que a ave
reside e o canto mora


e morre.



albano martins
a margem do azul
1982









26 dezembro 2019

albano martins / inocência



Nenhuma rosa
é inocente. Nem mesmo
o seu perfume. Que este
fere
às vezes
como os alfinetes
dos seus espinhos.


albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999












16 junho 2019

albano martins / pequenas coisas



Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.



albano martins
canal revista de literatura nr.6
verão de 1999
palha de abrantes






17 novembro 2018

albano martins / desta varanda, o mar




Para ser mastro de navio
precisas, primeiro,
de ser árvore

*

Para ser mástil de navio
necessitas, primeiro,
ser árbol.




albano martins
desta varanda, o mar
tradução para castelhano de
alfredo pérez alencart
edições simplesmente
2014







06 junho 2018

albano martins / como se fosses o mar



(6-08-1930 / 6-6-2018)


Antigamente
era assim: bastava
o voo duma ave
para te arrepiar a pele. Agora
os navios cortam
a linha de água e nem
um leve sobressalto
te percorre os rins.


albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999







17 setembro 2015

albano martins / simulacro



Um gesto pode ser
um simulacro apenas.
Como quando arrefece
e acendes a lareira
para dar sangue às brasas.
No halo
da chama há sempre
uma voz que cintila
e te agradece.
É isso que se chama
dar voz ao silêncio.



albano martins
escrito a vermelho
campo das letras
1999



16 dezembro 2013

albano martins / compasso para elegia




Não me venham dizer que há remédio:
nada substitui a presença das coisas,
a presença material das coisas.

Os dias da morte
gravitam no escuro,
enquanto acendo fósforos de sombra
à tua procura nas gavetas,
nos armários, nas cabines,
em todos os lugares
onde fatalmente
tu não estás.

Nenhum prodígio pode reconstituir
a tua voz, o sorriso interior da tua boca,
voz humana, acesa no peito,
cujas palavras eram como labaredas.

Só o silêncio comemora o facto
de teres vivido como o álcool,
possuindo possuída,
com as artérias cheias de vinho doce
- corpo de vaso e sangue de licor.


  
albano martins
assim são as algas
campo das letras
2000