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14 agosto 2024

roberto juarroz / nem sequer temos um reino

 
 
Nem sequer temos um reino.
E o pouco que temos
não é deste mundo.
Mas tão-pouco é do outro.
 
Órfãos de ambos os mundos,
com o pouco que temos
resta-nos apenas
fazer outro mundo.
 
 
 
roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018



17 fevereiro 2023

roberto juarroz / também traímos a água

 



 
Também traímos a água.
 
A chuva não se reparte para isso,
o rio não corre para isso,
o charco não se detém para isso,
o mar não é presença para isso.
 
Novamente perdemos a mensagem,
as vogais abertas
da linguagem da água,
a sua inaudita transparência palpável.
 
Nem sequer soubemos
beber a transparência.
Beber algo é aprendê-lo.
E aprender a transparência é começar
a aprender o invisível.
 
 
 
roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018




24 julho 2020

roberto juarroz / os nomes não designam as coisas:




Os nomes não designam as coisas:
envolvem-nas, sufocam-nas.


Mas as coisas rasgam
as ligaduras das palavras
e voltam a estar aí, nuas,
à espera de algo mais que os nomes.

Só pode dizê-las
a sua própria voz de coisa,
a voz que nem ela nem nós sabemos,
nessa neutralidade que pouco fala,
esse mutismo enorme onde as ondas rebentam.


roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018






11 dezembro 2019

roberto juarroz / às vezes parece




Às vezes parece
que estamos no centro da festa.
No entanto
no centro da festa não há ninguém.
No centro da festa está o vazio.


Mas no centro do vazio há outra festa.



roberto juarroz
trad. arnaldo saraiva
hífen 7 abril
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992






10 julho 2019

roberto juarroz / a sinceridade dissimulada da noite


A sinceridade dissimulada da noite
guia as gotas de chuva
até à atenção exemplar das coisas
e uma sílaba antiga,
uma gota de homem,
humedece as paredes porosas do pensamento.
Borboleta de pedra viva
que recolhe a cor de uma estrela apagada
para enunciar o tecido ardente
onde o pensamento é pasto das coisas,
torre de alimento
para a fome intersticial e alerta.

Pensar é como amar.


roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018






13 abril 2019

roberto juarroz / as coisas imitam-nos




As coisas imitam-nos.
Um papel arrastado pelo vento
reproduz os tropeços do homem.
Os ruídos aprendem a falar como nós.
A roupa adquire a nossa forma.

As coisas imitam-nos.
Mas no final
nós imitaremos as coisas.



roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018






16 janeiro 2019

roberto juarroz / batem à porta




Batem à porta.
Mas as batidas soam ao contrário,
como se alguém batesse do lado de dentro.

Acaso serei eu quem bate?
Talvez as batidas de dentro
queiram anular as de fora?
Ou talvez a própria porta
tenha aprendido a batida
para abolir as diferenças?

O que importa é que já não se distingue
entre bater de um lado
e bater do outro.
  


roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018








09 outubro 2018

roberto juarroz / todos falam



Todos falam
do que encontraram no caminho.
Alguns falam também
do que não encontraram.
E uns tantos referem-se
ao que não é possível encontrar.

Mas há quem fale de um encontro
que surge de uma emboscada entre as mãos
como uma andorinha que nunca foi parte
de nenhum bando,
como um gesto secreto que recolha
a compaixão que falta nos encontros.

Todo o encontro nasce
como a água perante a sede.
O resto é uma miragem
que não chega sequer
a desconcertar o deserto.



roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018







10 setembro 2012

roberto juarroz / a densidade do que não é





   A densidade do que não é,
a força do que não se tem,
amontoa a água da vida
e cria um rumor de fundo
para todos os gestos.

   Até o tecido preto da morte
 tem um pálido fio
onde a trama cede e se aligeira
porque lhe falta morte.

   E até o que nunca viveu
e nunca morrerá
ergue-se na greta de uma ausência
que lhe empresta seu corpo.

   A pedra do não ser,
a certeira condição negativa,
a pressão do nada,
é o último apoio que nos resta.




roberto juarroz
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001