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28 janeiro 2024

ricardo reis / cedo de mais vem sempre, cloé, o inverno.

 
 
 
Cedo de mais vem sempre, Cloé, o inverno.
É sempre prematuro, inda que o espere
        Nosso hábito, o esfriar
        Do desejo que houve.
 
Não entardece que não morra o dia.
Não nasce amor ou fé em nós que não
        Morra com isso ao menos
        O não amar ou crer.
 
Todo o gesto que o nosso corpo faz
Com o repouso anterior contrasta.
        Nesta má circunstância
        Do tempo eternos somos.
 
Só sabe da arte com que viva a vida
Aquele que, de tão contínua usá-la,
        Furte ao tempo a vitória
        Das mudanças depressa,
 
E entardecendo como um dia trópico,
Até ao fim inevitável guie
        Uma igual vida, súbito
        Precipite no abismo.
 
7-7-1919
 
 
 
poemas de ricardo reis
fernando pessoa
imprensa nacional - casa da moeda
1994




19 março 2023

ricardo reis / quatro vezes mudou a estação falsa

 
 
 
Quatro vezes mudou a estação falsa
No falso ano, no imutável curso
        Do tempo consequente;
Ao verde segue o seco, e ao seco o verde;
E não sabe ninguém qual é o primeiro,
        Nem o último, e acabam.
 
s.d.



poemas de ricardo reis
fernando pessoa
imprensa nacional - casa da moeda
1994





12 julho 2020

ricardo reis / a cada qual, como a estatura, é dada



A cada qual, como a estatura, é dada
        A justiça: uns faz altos
        O fado, outros felizes.
Nada é prémio: sucede o que acontece.
        Nada, Lídia, devemos
        Ao fado, senão tê-lo.

20-11-1928




fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946

26 janeiro 2020

ricardo reis / a nada imploram tuas mãos já coisas,



A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
        No abafo subterrâneo
        Da húmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
        Te ergue qual eras, hoje
        Cortiço apodrecido.
E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
        Não lembra. A ode grava,
        Anónimo, um sorriso.

5-1927




fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946






03 novembro 2019

ricardo reis / vou dormir, dormir, dormir,



                                Nirvana


Vou dormir, dormir, dormir,
Vou dormir sem despertar,
Mas não dormir sem sentir
Que estou dormindo a sonhar.

Não insciência e só treva
Mas também estrelas a abrir
Olhos cujo olhar me enleva,
Que estou sonhando a dormir.

Constelada inexistência
Em que subsiste de meu
Só uma abstracta insciência
Una com estrelas e céu.

20-2-1928


fernando pessoa
poemas de ricardo reis
imprensa nacional - casa da moeda
1994








06 outubro 2019

ricardo reis / para ser grande, sê inteiro: nada



Para ser grande, sê inteiro: nada
        Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
        No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
        Brilha, porque alta vive.


14-2-1933



fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946







24 março 2019

ricardo reis / cada um cumpre o destino que lhe cumpre.




Cada um cumpre o destino que lhe cumpre.
E deseja o destino que deseja;
                Nem cumpre o que deseja,
                Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
                Que a Sorte nos fez postos
                Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
                Cumpramos o que somos.
                Nada mais nos é dado.

29-7-1923




fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946







24 fevereiro 2019

ricardo reis / domina ou cala. não te percas, dando




Domina ou cala. Não te percas, dando
Aquilo que não tens.
Que vale o César que serias? Goza
Bastar-te o pouco que és.
Melhor te acolhe a vil choupana dada
Que o palácio devido.

27-9-1931



fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946








30 setembro 2018

ricardo reis / negue-me tudo a sorte, menos vê-la,




Negue-me tudo a sorte, menos vê-la,
        Que eu, estóico sem dureza,
Na sentença gravada do Destino
        Quero gozar as letras.

20-11-1928


fernando pessoa
odes de ricardo reis
ática
1946















20 maio 2018

ricardo reis / sê dono de ti




Sê o dono de ti
Sem fechares os olhos.

 
Na dura mão aperta
Com um tacto encavado
O mundo exterior
Contra a palma sentindo
Outra cousa que a palma.

11-8-1918



poemas de ricardo reis
fernando pessoa
imprensa nacional-casa da moeda
1994






21 janeiro 2018

ricardo reis / breve o inverno virá com sua branca




Breve o inverno virá com sua branca
        Nudez vestir os campos.
As lareiras serão as nossas pátrias
        E os contos que contarmos
Assentados ao pé do seu calor
        Valerão as canções
Com que outrora entre as verdes ervas rijas
        Dizíamos ao sol
O ave ataque vale triste e alegre,
        Solenes e carpindo.
Por ora o outono está connosco ainda.
        Se ele nos não agrada
A memória do estio cotejemos
        Com a esperança hiemal.
E entre essas dádivas memoradas
        Como um rio passemos.

17-7-1914



poemas de ricardo reis
fernando pessoa
imprensa nacional-casa da moeda
1994




05 novembro 2017

ricardo reis / cada coisa a seu tempo tem seu tempo




Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.

30-7-1914




odes de ricardo reis
fernando pessoa
ática
1946




02 julho 2017

ricardo reis / dia após dia a mesma vida é a mesma.




Dia após dia a mesma vida é a mesma.
        O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
        Igualmente decorre.
Colhido, o fruto deperece; e cai
        Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
        Quer o esperemos. Sorte
Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
        Forma alheio e invencível.

2-9-1923



odes de ricardo reis
fernando pessoa
ática
1946




29 janeiro 2017

ricardo reis / deixa passar o vento



Deixa passar o vento
Sem lhe perguntar nada.
Seu sentido é apenas
Ser o vento que passa…
Consegui que desta hora
O sacrifical fumo
Subisse até ao Olimpo.
E escrevi estes versos
Pra que os deuses voltassem.

12-9-1916



fernando pessoa
poemas de ricardo reis
imprensa nacional - casa da moeda
1994



13 novembro 2016

ricardo reis / não quero recordar nem conhecer-me



Não quero recordar nem conhecer-me.
Somos demais se olhamos em quem somos.
        Ignorar que vivemos
        Cumpre bastante a vida.
Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
        Quando passa connosco,
        Que passamos com ela.
Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?),
        Melhor vida é a vida
        Que dura sem medir-se.

2-9-1923


odes de ricardo reis
fernando pessoa
ática
1946




02 outubro 2016

ricardo reis / não tenhas nada nas mãos




Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,

Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,

Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.

Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?

Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?

Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra

Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.

Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.

Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.

19-6-1914



odes de ricardo reis
fernando pessoa
ática
1946



01 agosto 2015

ricardo reis / não só quem nos odeia ou nos inveja



Não só quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
                   Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afectos, tenha a fria liberdade
                   Dos píncaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
                   Homem, é igual aos deuses.




ricardo reis




11 abril 2015

ricardo reis / vivem em nós, inúmeros



Vivem em nós, inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem eu sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

  

ricardo reis



07 dezembro 2014

ricardo reis / no breve número de doze meses



No breve número de doze meses
O ano passa, e breves são os anos,
Poucos a vida dura.
Que são doze ou sessenta na floresta
Dos números, e quanto pouco falta
Para o fim do futuro!
Dois terços já, tão rápido, do curso
Que me é imposto correr descendo, passo.
Apresso e breve acabo.
Dado em declive deixo, e invito apresso
O moribundo passo.

Não sei de quem recordo meu passado
Que outrem fui quando o fui, nem me conheço
Como sentindo com minha alma aquela
Alma que a sentir lembro.
De dia a outro nos desamparamos.
Nada de verdadeiro a nós nos une -
Somos quem somos, e quem fomos foi
Coisa vista por dentro.

O que sentimos, não o que é sentido,
É o que temos. Claro, o Inverno triste
Como à sorte o acolhamos.
Haja Inverno na terra, não na mente.
E amor a amor ou livro a livro, amemos
Nossa caveira breve.

Vive sem horas. Quanto mede pesa,
E quanto pensas mede.
Num fluido incerto nexo, como o rio
Cujas ondas são ele,
Assim teus dias vê, e se te vires
Passar, como a outrem, cala.
Uns com os olhos postos no passado
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto -
A segurança nossa? Este é o dia
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe o dia, porque és ele.

Aguardo, equânime, o que não conheço -
Meu futuro e o de tudo.
No fim de tudo será silêncio, salvo
Onde o mar banhar nada.

Saudoso já deste Verão que vejo,
Lágrimas para as flores dele emprego
Na lembrança invertida
De quando hei-de perdê-las.
Transpostos os portais irreparáveis
De cada ano, me antecipo a sombra
Em que hei-de errar sem flores,
No abismo rumoroso.
E colho a rosa porque a sorte manda,
Marcenda, guardo-a; murche-se comigo
Antes que com a curva
Diurna da ampla terra.


ricardo reis
odes





12 outubro 2014

ricardo reis / vem sentar-te comigo, lídia, à beira do rio




Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                   (Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
                  Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente.
                  E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
                 E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
                Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
               Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
                Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbulo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio -,
                  Pagã triste e com flores no regaço.




ricardo reis