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23 julho 2024

paul auster / desenterrar

 



 

XV
 
Frágil amanhecer: a fronteira
da tua obscurecida lâmpada: ar
sem palavra: uma pendente
corola de cinza, arredondada em rosa.
Pões água na fervura
do mais pequeno
dos teus sóis: casca
de luz assoreada: a verdadeira semente
no pousio da tua palma, aprofundando-se
em torpor. Para lá desta hora, o olhar
ensinar-te-á. O olhar aprenderá
a desejar.
 
 
 
paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
 





31 julho 2020

paul auster / credo



As infinitas


pequenas coisas. Por uma vez respirar tão-só
na luz das infinitas


pequenas coisas
que nos rodeiam. Ou nada
pode escapar


ao encanto dessa escuridão, o olhar
descobrirá que somos apenas
o que nos fez
menos do que somos. Nada dizem. Dizer:
as nossas vidas mesmas


dependem disso.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002







05 março 2018

paul auster / desaparecimentos




5
Diante da parede,

ele adivinha a monstruosa
soma da singularidade.

Não é nada.
E é tudo o que ele é.
E se ele quiser ser nada, deixem-no então  principiar
onde se encontra, e como qualquer outro homem,
aprender o falar deste lugar.

Porque também ele vive o silêncio
que antecede a palavra
de si mesmo.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002






04 janeiro 2017

paul auster / desenterrar



I
De par com as tuas cinzas, aqueles
ainda mal acabados de escrever, suprimindo
a ode, as atiçadas raízes, a estraneidade
do olhar – com mãos embrutecidas, arrastaram-te
para a cidade, apertaram-te
neste laço de gíria, e nada
te ofertaram. A tua tinta aprendeu
a violência das paredes. Banida,
mas sempre rumo à fraternal
quietude do coração, revolves os seixos
da velada terra, e compões o teu lugar
por entre os lobos. Cada sílaba
é um trabalho de sabotagem.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002



16 março 2016

paul auster / desaparecimentos



2

È uma parede. E a parede é a morte

Ilegível
Rascunho de mal-estar, na imagem

e pós-imagem da vida –

e os muitos que aqui estão
embora nunca nascidos,
e aqueles que falariam

para se darem à luz.

Ele saberá o falar deste lugar.
E saberá manter a boca fechada.

Porque é isto a nostalgia: um homem.


paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002



07 fevereiro 2015

paul auster / noites brancas



Ninguém aqui,
e o corpo diz: o que se diz
não é para ser dito. Mas ninguém
é também um corpo, e o que diz o corpo
ninguém ouve
senão tu.

Noite e queda de neve. A repetição
de um homicídio
por entre as árvores. A caneta
move-se através da terra: já não sabe
o que vai acontecer, e desapareceu
a mão que a segura.

E no entanto, escreve.
escreve: no princípio,
por entre as árvores, um corpo veio
caminhando da noite. Escreve:
a brancura do corpo
é a cor da terra. É terra,
e a terra escreve: tudo
é a cor do silêncio.

Já não estou aqui. Nunca disse
o que dizes
que eu disse. E no entanto, o corpo é um lugar
onde nada morre. E todas as noites,
pelo silêncio das árvores, sabes
que a minha voz
vem caminhando para ti.



paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002




15 junho 2014

paul auster / desaparecimentos



1

De pura solidão, ele recomeça ─

como se fosse a última vez
que respirasse,

e é por isso agora

que pela primeira vez respira
para além do alcance
do singular.

Está vivo, e ele não é senão por isso
o que se afoga no insondável poço
do seu olho,

e o que ele vê
é tudo o que ele não é: a cidade

da indecifrável
ocorrência,

e logo a língua das pedras,
pois ele sabe que por toda a vida
uma pedra
dará lugar a outra pedra
para fazer uma parede

e que estas pedras todas
farão a soma monstruosa

da singularidade.


paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002




08 abril 2014

paul auster / fragmento de frio



Porque cegamos
no dia que sai connosco,
e porque vimos o nosso hálito
embaciar
o espelho do ar,
a nada se abrirá
o olho do ar
senão à palavra
que renunciamos: o inverno
terá sido um espaço
de maturidade.

Nós que nos tornamos nos mortos
de outra vida que não a nossa.


paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002



31 agosto 2011

paul auster / desenterrar



.
.
.

XIX

Ainda morrem os mortos: e neles
os vivos. Todo o espaço,
e os olhos, caçados
por frágeis utensílios, confinados
às suas vestes.
Respirar é aceitar
esta falta de ar, a única respiração,
procurada nas fissuras
da memória, no lapso que aparta
esta linguagem de trincheiras, sem a qual a terra
teria ofertado mais férrea profecia
para erodir os pomares
de pedra. Nem ao menos o silêncio
me persegue.







paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002
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27 dezembro 2010

paul auster / eixos





Ver é estoutra aflição, expiada
Na dor de ser visto: o dito,
O visto, contidos na recusa
De falar, e de uma só voz a semente,
Sepultada no acaso de uma pedra.
Nunca as minhas mentiras me pertenceram.






paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002







27 abril 2010

paul auster / desaparecimentos








7



Está só. E a partir do momento em que começa
a respirar,

está em nenhum lugar. Morte plural, nascida

no maxilar do singular,

e a palavra que levantaria uma parede
a partir da mais íntima pedra
da vida.

Porque ele deixa de ser
por cada coisa de que fala —

e em lugar de si mesmo,
ele diz eu, como se também ele começasse
a viver em todos os outros

que não são. Porque a cidade é monstruosa,
e a sua boca não prova
matéria alguma

que não devore a palavra
de um outro.

Assim, há-as muitas,
e todas estas muitas vidas
talhadas nas pedras
de uma parede,
e aquele que começasse a respirar
aprenderia que não há outro lugar para onde ir
senão este lugar.

Por isso, ele recomeça,

como se fosse respirar
a última vez.

Porque não há outra vez. E é o fim do tempo

que começa.








paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002








06 maio 2007

desenterrar




IV

Noite, como se saboreada
por dentro. E cada mentira nossa
seria pela língua conhecida
quando recuasse, e naufragasse
no próprio veneno.
Dormiríamos, lado a lado
com tamanha fome, e desde o fruto
que guerreamos, seríamos os nomes
das coisas que nomeamos. Como se um crime,
por nós sonhado, pudesse no frio medrar,
e despenhar estas negras, crepitantes árvores
que sorvem a história das estrelas.







paul auster
poemas escolhidos
tradução de rui lage
quasi
2002