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27 julho 2022

mário dionísio / memória dum pintor desconhecido

 
 
46
Neste café quase deserto
não espero hoje ninguém
senão a cor difusa duma ausência
que não magoa e sabe bem
 
Uma palavra ou outra incompleta se recorta
na memória um minuto preguiçosa
só mal desperta quando a porta
se abre e fecha e entra alguém
que vai sentar-se longe ou aqui perto
 
O sol de inverno sinto-o nos dedos
como discreta ajuda carinhosa
a esta construída sonolência
tão espontânea sei lá em tanta gente
 
Que longe tudo o que procuro!
 
Ser como os outros todos um instante que seja é tão tranquilo e diferente!
sem planos sem segredos
sem história sem passado sem futuro
 
 
 
mário dionísio
poesia completa
memória dum pintor desconhecido (1965)
imprensa nacional-casa da moeda
2016




02 abril 2022

mário dionísio / se pudéssemos dizer até breve

 
 
43.
Se pudéssemos dizer até breve
quando nos separamos
 
Se pudéssemos partir claro está
que ninguém aqui está sempre perto sempre pronto
para agarrar a palavra
 
Se não houvesse sempre esse lobo atrás da parede
da nossa casa
 
Se prosseguir
não fosse a lei do tempo de paz  não é de paz
que a gente habita
 
 
mário dionísio
poesia completa
le feu qui dort (1967)
versão portuguesa de regina guimarães
imprensa nacional-casa da moeda
2016




15 julho 2021

mário dionísio / estarei sempre lá fora

 
 
O mundo que vem da tua ternura inatingível
será um mundo sempre fraco.
 
Nem a tua voz diferente,
nem a tua clara gargalhada,
nem a tua pele, dura e tenra, macia, macia,
poderão afastar-me do mundo a esfacelar-se no nevoeiro universal.
Nem da tua alegria poderá apagar em mim
a angústia dos outros – fim e princípio de tudo quanto sou.
Nada poderá distrair-me
Dos gritos lá de fora enchendo as ruas de braços e de bocas dolorosas.
Nada poderá afugentar-me.
 
As tuas mãos serão sempre impotentes para reter-me
no caudal correndo sempre.
Fraca sempre a tua carne para embriagar-me inteiramente.
 
Porque, por mais que me sintas na sensação das formas
dentro de ti no isolamento de tudo,
eu estarei sempre lá fora,
rugindo e batalhando,
vivendo com os outros.
 
 
mário dionísio
poesia completa
poemas (1936-1938)
imprensa nacional-casa da moeda
2016






26 julho 2020

mário dionísio / memória dum pintor desconhecido



47
Com o dedo escreves
no vidro molhado
uma palavra indecifrável

Às oito e meia da manhã
na cidade apressada
ninguém a pode ver

Mas quem ouve o segredo
desse arabesco de árvore
já não vai ao emprego

Fica tonto a olhar
enternecidamente
tudo e nada

mesmo sem entender


mário dionísio
poesia completa
memória dum pintor desconhecido (1965)
imprensa nacional-casa da moeda
2016




25 abril 2017

mário dionísio / à tua volta



102

À tua volta
espalha a alegria

Não o contentamento
esse cântaro quebrado
num mundo sitiado
onde tudo nos magoa
e vira
contra tudo
o grande riso dos engenhos
para esmagar
o amor e a ternura

Não o contentamento
esse estou-me nas tintas dos velhos manhosos
coração ausente hilariedade
até nos tira a fome e a vontade
e tu próprio dilacerado
cativo
da ironia suja
dos arames farpados
dos sentimentos sepultados

Onde quer que sejas
onde quer que estejas
em liberdade
sem liberdade
acorrentado fustigado fica de pé


mário dionísio
poesia completa
le feu qui dort (1967)
imprensa nacional-casa da moeda
2016



05 abril 2017

mário dionísio / canto de bar



Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!

Aqui o canto de bar
onde vêm parar os que serão suicidas,
gente de todas as nações falando todas as línguas,
emigrados de todos os países.
Aqui o canto de bar
onde ancorou o jogador arruinado
e as mulheres que perderam o número dos amantes
e os moços que sonharam vidas que não puderam ter.
Onde os cantores esquecidos cantam valsas lentas e antigas
que trazem a recordação de lares despedaçados.
Onde vieram parar os maltrapilhos perdidos para sempre
e onde as valsas cantadas por vozes arrastadas,
que lembram multidões de coisas,
já não trazem a mínima saudade.
Aqui onde se sabe indiferentemente
que o homem saído há pouco
estendeu a corda e se enforcou na escada.
Aqui onde se joga tudo sem interesse
porque já não há nada para jogar.
É o canto soturno
onde não entra sol nem lua.
Janelas fechadas, só fumo e luz vermelha.
Homens de todas as raças de olhos desiludidos,
mulheres de todas as raças de cabelos desgrenhados.
Aqui o canto de bar
onde veio parar o lixo de todas as nações.
(Todos que estavam a mais nas cidades e nos lares…)

Canta, cantor esquecido, tuas valsas de angústia!


mário dionísio
poesia completa
poemas (1936-1938)
imprensa nacional-casa da moeda
2016



03 novembro 2016

mário dionísio / deixais só a bela nuvem



48
Deixais só a bela nuvem
isso que é doce e assustadiço
de claridade desdenhada
isso que queria devolver-vos
à vossa imagem


isso dorme em vós
por vós asfixiado


mário dionísio
poesia completa
le feu qui dort 1967
(o fogo adormecido
versão portuguesa de regina guimarães 2015)
imprensa nacional-casa da moeda
2016



07 outubro 2016

mário dionísio / jovem de riso ardente



LXII
Jovem de riso ardente
e voz irreverente
rubra provocação

Jovem-explosão
tratando a Revolução
tu cá-tu lá

daqui a vinte anos que dirás?

Como serás
e que haverá
então?



mário dionísio
poesia completa
terceira idade 1982
imprensa nacional-casa da moeda
2016




23 dezembro 2015

mário dionísio / a casa deserta



Ah nada pior que a casa deserta,
sozinha, sozinha.


O fogão apagado e tudo sem interesse.
O mundo lá longe, para lá da floresta.
E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta...


Ah nada pior que estes dias e dias,
de cachimbo aceso, com as mãos inertes,
com todas as estradas inteiramente barradas,
ouvindo a floresta.
Com tudo lá longe, na casa deserta,
o vento soprando
e a chuva caindo, na noite caindo...


Há uma cancela que range nos gonzos
um velho cão de guarda que ladra sem motivo
- parece que é gente que vem a entrar...


E é só o vento soprando, soprando
e a chuva caindo...


Mudaram muita vez as folhas da floresta.
Os olhos do homem são olhos de doido.
Fogão apagado, aceso o cachimbo, o mundo lá longe.


E o vento soprando
a chuva caindo
a casa deserta...



mário dionísio
poesia incompleta
publicações europa-américa
1982