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08 maio 2024

giórgios seféris / automóvel

 
 
Na estrada, abraço de compasso,
dois braços, um apelo,
dedos de vento no cabelo
mil milhas no regaço,
 
vamos os dois livres, sem cruz,
chibata no olhar langue;
são-nos enfeites alma e sangue,
e vamos nus! Nus! Nus!
 
Nesse leito de alto espaldar
de almofadas de penas,
ao longe fogem nossas penas,
qual peixe à beira-mar.
 
E nos dois braços estendidos,
apenas corpos, vamos,
pelos dois lados, em dois ramos,
corações repartidos.
 
De Strofi, 1931
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021





 

12 agosto 2023

giórgios seféris / negação

 
 
Na praia do mar, bem guardada,
branca pomba, ao mei’dia,
a sede que a gente sentia
– e a água salgada!
 
Escrevemos o nome dela
na loura areia lisa,
mas ao de leve sopra a brisa
e a escrita já se vela.
 
Com que alma e força desmedida
com que chama e paixão,
levámos nossa vida, em vão!
E mudámos de vida!
 
 
                  De Strofi, 1931
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021
 

15 fevereiro 2023

yorgos seferis / eurípedes, ateniense

 



 
Envelheceu entre o fogo de Troia
e as pedreiras da Sicília.
 
Gostava das cavernas no areal e dos desenhos
          do mar.
Viu as veias dos homens
como rede dos deuses, onde nos apanham como às alimárias;
tentou rompê-la.
Era sibilino, seus amigos poucos;
veio o tempo em que os cães o devoraram.
 
 
 
yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
 




24 junho 2022

yorgos seferis / as fogueiras de s. joão

 
 
IV
O nosso destino, chumbo fundido, não pode mudar
nada pode fazer-se.
Deitaram o chumbo fundido na água debaixo das estrelas e
          as fogueiras podem arder.
 
Se ficares nua diante do espelho à meia-noite
          vês
vês o homem passar no fundo do espelho
o homem dentro do teu destino que governa o
          teu corpo,
dentro da solidão e do silêncio o homem
da solidão e do silêncio
e as fogueiras podem arder.
 
À hora em que findou o dia e não começou outro
à hora em que se cortou o tempo
aquele que desde agora e antes do princípio governava
          o teu corpo
tens de encontra-lo
tens de procura-lo para que pelo menos
outro alguém o encontre, quando tiveres morrido.
 
São as crianças que acendem as fogueiras e gritam
          diante das labaredas dentro da noite quente
 
          (Houve acaso alguma fogueira que não fosse acesa
          por uma criança, ó Heróstrato)
e deitam sal dentro das chamas para que crepitem
          (Como olham estranhamente as casas de súbito para nós,
          cadinhos das pessoas, quando as afagar
          um reflexo).
 
Mas tu que conheceste a graça da pedra no rochedo
          batido pelo mar
o entardecer em que a serenidade caiu
ouviste de longe a humana voz da solidão
          e do silêncio
dentro do teu corpo
aquela noite de S. João
quando se apagaram todas as fogueiras
e estudaste a cinza debaixo das estrelas.
 
                                                Londres, Julho 1932
 
 
 
yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
 




05 julho 2021

yorgos seferis / romance

 
 
XV
 
                                        Quid campo de plátanos opacissimus?
 
 
O sono envolveu-te, como uma árvore, com folhas verdes,
respiravas, como uma árvores, na luz tranquila,
olhei para a forma do teu rosto dentro da fonte diáfana;
pálpebras fechadas e os cílios riscavam a água.
Os meus dedos na erva macia, encontraram os teus
          dedos
prendi o teu pulso um momento
e senti noutro lugar a dor do teu coração.
 
Debaixo do plátano, perto da água, entre os loureiros
o sono deslocava-te e despedaçava-te
em redor de mim, perto de mim, sem poder tocar-te
          inteira,
una com o teu silêncio;
vendo a tua sombra crescer e diminuir,
perder-se noutras sombras, dentro do outro
mundo que te deixava e prendia.
 
A vida que nos deram para viver, vivemo-la.
Tem dó dos que esperam com tanta paciência
Perdidos entre os loureiros negros debaixo dos pesados
          plátanos
e dos que falam sós por cisternas e por poços
e se afogam dentro dos círculos da voz.
 
Tem dó do companheiro que partilhou a nossa privação
          e o suor
e afundou dentro do sol qual corvo além dos mármores,
sem esperança de disfrutar a nossa recompensa.
 
Dá-nos, fora do sono, a serenidade.
 
 
 
yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





 

03 julho 2020

yorgos seferis / inscrição tumular



As brasas dentro do nevoeiro
eram rosas enraizadas no teu coração
e a cinza cobria o teu rosto
todas as manhãs.

Desfolhando sombras de ciprestes
partiste no verão a seguir.



yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993








31 janeiro 2020

yorgos seferis / garrafa ao mar



XII

Três rochedos alguns pinheiros queimados e uma ermida
e mais acima
a mesma paisagem copiada recomeça;
três rochedos em forma de pórtico, enferrujados
alguns pinheiros queimados, negros e amarelos
uma pequena casa quadrada enterrada na cal;
e mais acima muitas vezes ainda
a mesma paisagem recomeça em escadaria
até ao horizonte até ao pôr do céu.

Aqui atracámos o barco para remendar os remos partidos,
beber água e dormir.
O mar que nos amargurou é fundo e inexplorado
e desdobra uma serenidade infinda.
Aqui entre os seixos encontrámos uma moeda
e jogámo-la aos dados.
Ganhou-a o mais novo e perdeu-se.

Voltámos a embarcar com os nossos remos partidos.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





01 novembro 2019

yorgos seferis / o velho



Passaram tantos rebanhos tantos pobres
e ricos cavaleiros, outros
das aldeias distantes passaram
a noite nas valetas da estrada
acenderam fogueiras contra os lobos, vês
a cinza? Negrejantes círculos cicatrizados.
Está cheio de marcas como a estrada.
Ao poço seco mais acima atiravam os cães
com raiva, não tem olhos está cheio
de marcas e é leve; o vento sopra;
não distingue nada conhece tudo,
bainha vazia de cigarra em árvore oca
não tem olhos nem nas mãos, conhece
a alba e o oceano conhece as estrelas
o sangue delas não o alimenta, nem sequer
está morto, não tem tribo não morrerá
esquecê-lo-ão simplesmente, nem sequer antepassado.
As unhas cansadas nos seus dedos
escrevem cruzes sobre lembranças podres
enquanto o turvo vento sopra. Está a nevar.

Vi a geada em redor dos rostos
vi os lábios húmidos as lágrimas geladas
no canto dos olhos, vi a linha
de dor junto das narinas e o esforço
nas raízes da mão, vi o corpo a acabar.
Nem solidão tem esta sombra amarrada
a um pau que secou que não verga
não se baixa para se deitar, não pode;
o sono espalharia as suas articulações
pelas mãos das crianças para brincarem.
Ordena como os ramos mortos
que se partem quando anoitece e o vento
acorda dentre os barrancos
ordena às sombras dos homens
não ao homem dentro da sombra
que não ouve excepto a voz baixa
da terra e do mar aí onde se juntam
à voz do destino. Está completamente de pé
na margem, entre novelos de ossos
entre pilhas de folhas amarelas:
gaiola vazia esperando
pela hora do fogo.


Drénòvô, fevereiro 1937



yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993








19 julho 2019

yorgos seferis / a casa perto do mar



As casas que tive tiraram-mas. Calhou
que fossem anos nefastos guerras desolações expatriamentos;
por vezes o caçador encontra as aves de passagem
por vezes não as encontra; a caça
era boa no meu tempo, os chumbos apanharam muitos;
os outros vagueiam ou enlouquecem nos refúgios.

Não me fales do rouxinol nem da cotovia
nem da pequena arvéola
que escreve algarismos na luz com a sua cauda;
não sei muito de casas
sei que têm a sua tribo, mais nada.
novas ao princípio, como as crianças de colo
que brincam nos jardins como as franjas do sol,
bordam coloridas persianas e brilhantes
portas sobre o dia;
quando o arquitecto acaba mudam,
enrugam ou sorriem ou mesmo teimam
com os que ficaram com os que partiram
com outros que voltariam se pudessem
os que se perderam, agora que o mundo
se tornou num imenso hotel.

Não sei muito de casas,
lembro-me da sua alegria e da sua tristeza
às vezes quando paro;
                                            mesmo
às vezes, perto do mar, em câmaras nuas
com uma cama de ferro sem nada meu
olhando a aranha nocturna cismo
que alguém se prepara para vir, que o enfeitam
com roupa branca e negra com jóias multicores
e em seu redor falam baixo damas veneráveis
cabelos cinzentos e rendado escuro,
que se prepara para vir e despedir-se de mim;
ou, uma mulher com pestanas em hélice talhe profundo
voltando de portos meridionais,
Esmirna Rodes Siracusa Alexandria,
de cidades fechadas com as quentes persianas,
com perfumes de frutos de ouro e com ervas mágicas,
que sobe os degraus sem ver
os que adormeceram debaixo das escadas.

Sabes as casas teimam facilmente, quando as despes.


yorgos seferis
tordo
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





24 maio 2019

yorgos seferis / romance




XXIII

Um pouco mais
e veremos florescer as amendoeiras
os mármores brilharem ao sol
o mar a ondear

um pouco mais
para nos levantarmos um pouco mais alto


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993






23 junho 2018

yorgos seferis / siroco 7 levante


                   A.D.I. Antòníu


Coisas que mudaram a forma do nosso rosto
mais fundo que o pensamento e mais
nossas tal como o sangue e mais
afundaram no brasido do meio-dia
por detrás dos mastros.

Entre as cadeias e as ordens
ninguém se lembra.

Os outros dias as outras noites
corpos, dor e prazer
a amargura da nudez humana despedaçada
mais baixa que as plantas do pimento por caminhos de poeira
com tantas fascinações e tantos símbolos
no último ramo;
na sombra do grande barco
sombra a memória.

As mãos que nos tocaram não nos pertencem, apenas
mais fundo, quando as rosas escurecem,
um ritmo na sombra do monte, grilos
humedece o nosso silêncio dentro da noite
procurando o sono do mar
deslizando para o sono do mar.

Na sombra do grande barco
quando rangeu o cabrestante
deixei o afecto aos agiotas.


Pélion, 19 de Agosto de 1935




yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993







14 março 2018

yorgos seferis / entre dois momentos amargos…


   
Entre dois momentos amargos não tens tempo sequer
                para respirar
entre o teu rosto e o teu rosto
uma terna forma de rosto de criança inscreve-se e apaga-se.




yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993








06 novembro 2017

yorgos seferis / flores do rochedo



Flores do rochedo diante do mar verde
com veias que me lembravam outros amores
ao brilharem na lenta queda de gotas,
flores do rochedo semblantes
que vieram quando ninguém falava e me falaram
que me deixaram tocá-los depois do silêncio
entre pinheiros loendros e plátanos.



yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





24 julho 2017

yorgos seferis / romance



II
Ainda mais um poço dentro de uma caverna.
Outrora era-nos fácil extrair ídolos e adornos
para se alegrarem os amigos que nos permaneciam
          ainda fiéis.

As cordas romperam-se; apenas sulcos na boca
          do poço
nos lembram a nossa felicidade passada:
os dedos no murete, como dizia o poeta.
Os dedos sentem a frescura da pedra um pouco
e o calor do corpo conquista-a
e a caverna joga a sua alma e perde-a
a cada momento, cheia de silêncio, sem uma gota.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993






20 abril 2017

yorgos seferis / mas que procuram as nossas almas viajando



VIII

Mas que procuram as nossas almas viajando
no convés de barcos aniquilados
apertadas entre mulheres amarelas e crianças que choram
sem poderem esquecer nem com os peixes-voadores
nem com as estrelas indicadas pelas pontas dos mastros.
Estilhaçadas pelos discos dos gramofones
atadas sem o querer a peregrinações inexistentes
murmurando pensamentos quebrados de línguas estrangeiras.

Mas que procuram as nossas almas viajando
sobre as podres madeiras marítimas
de porto em porto?

Mexendo em pedras partidas, aspirando
a frescura do pinheiro com mais dificuldade cadadia,
nadando nas águas deste mar
e daquele mar,
sem tocar
sem seres humanos
dentro de uma pátria que já não é nossa
nem vossa.

Sabíamos que eram belas as ilhas
por aqui algures onde tacteamos
um pouco mais abaixo ou um pouco mais acima
um espaço mínimo.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993








12 janeiro 2017

yorgos seferis / andrómeda



XX
No meu peito a ferida abre de novo
quando as estrelas baixam e ficam parentes do meu
          corpo
quando cai o silêncio debaixo dos pés dos homens.

Estas pedras que soçobram dentro do tempo até
          onde vão arrastar-me?
O mar o mar quem poderá esgotá-lo?
Vejo as mãos acenarem todas as madrugadas ao abutre e
          ao falcão
atada ao rochedo que pela dor se tornou meu,
vejo as árvores que respiram a serenidade negra
          dos mortos
e de seguida os sorrisos, que não avançam, das estátuas.


yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993