Pouco a pouco,
Sem que qualquer coisa me falte,
Sem que qualquer coisa me sobre,
Sem que qualquer coisa esteja exactamente na mesma
posição,
Vou andando parado,
Vou vivendo morrendo,
Vou sendo eu através de uma quantidade de gente sem
ser.
Vou sendo tudo menos eu.
Acabei.
Pouco a pouco,
Sem que ninguém me falasse
(Que importa tudo quanto me tem sido dito na
vida?),
Sem que ninguém me escutasse
(Que importa quanto disse e me ouviram dizer?)
Sem que ninguém me quisesse
(Que importa o que disse quem me disse que
queria?),
Muito bem...
Pouco a pouco,
Sem nada disso,
Sem nada que não seja isso,
Vou parando,
Vou parar,
Acabei.
Qual acabei!
Estou farto de sentir e de fingir em pensar,
E não acabei ainda.
Ainda estou a escrever versos.
Ainda estou a escrever.
Ainda estou.
(Não, não vou acabar
Ainda...
Não vou acabar.
Acabei.)
Subitamente, na rua transversal, uma janela no alto
e que vulto nela?
E o horror de ter perdido a infância em que ali não
estive
E o caminho vagabundo da minha consciência
inexequível.
Que mais querem? Acabei.
Nem falta o canário da vizinha ó manhã de outro
tempo,
Nem som (cheio de cesto) do padeiro na escada
Nem os pregões que não sei já onde estão —
Nem o enterro (ouço as vozes) na rua,
Nem trovão súbito da madeira das tabuinhas de
defronte no ar de verão
Nem... quanta coisa, quanta alma, quanto
irreparável!
Afinal, agora tudo cocaína...
Meu amor infância!
Meu passado bibe!
Meu repouso pão com manteiga boa à janela!
Basta, que já estou cego para o que vejo!
Arre, acabei!
Basta!
2-7-1930
álvaro de
campos
livro de
versos
fernando
pessoa
estampa
1993
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