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29 junho 2024

jorge luís borges / o despertar

 
 
 
Entra a luz e ascendo inertemente
Dos sonhos para o sonho repartido
E as coisas recuperam o seu devido
E aguardado lugar e no presente
Concentra-se, opressivo e vasto, o vago
Ontem: as seculares migrações
Das aves e dos homens, as legiões
Que o ferro destruiu, Roma e Cartago.
Também regressa a quotidiana história:
Meu rosto, minha voz, receio e sorte.
Ah, se aquele outro despertar, a morte
Me apresentasse um tempo sem memória
Do meu nome e de tudo o que fui sendo!
Se nesse dia houvesse esquecimento!
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




05 maio 2024

jorge luís borges / talho

 
 
 
Mais vil do que um bordel,
O talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
fervor de buenos aires (1923)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




19 novembro 2023

jorge luís borges / insónia

  
 
De ferro,
de encurvadas vigas de enorme ferro tem de ser a noite,
para que não a rebentem e a desentranhem
as muitas coisas que os meus olhos repletos já viram,
as duras coisas que insuportavelmente a povoam.
 
O meu corpo enjoou as passagens de nível, as temperaturas, as luzes:
Em vagões de longos caminhos-de-ferro,
num banquete de homens que se enfastiam,
no fio amolgado dos subúrbios,
numa abafada quinta com estátuas húmidas,
na noite repleta onde abundam os cavalos e os homens.
 
O universo desta noite tem a vastidão
do esquecimento e a precisão da febre.
 
Em vão desejo distrair-me do corpo
e dos desvelos de um espelho incessante
que o dissipa e o espreita
e da casa que repete os seus pátios
e do mundo que continua até ao degradado arrabalde
de barro torpe e de becos onde o vento se cansa.
 
Em vão aguardo
as desintegrações e os símbolos que antecedem o sono.
 
Prossegue a história universal:
os minuciosos rumos da morte nas cáries dentárias,
a circulação do meu sangue e dos planetas.
 
(Odiei a água libertina de um charco,
cansei-me ao entardecer com o canto dos pássaros.)
 
As fatigadas léguas sem fim do subúrbio do Sul,
léguas de pampa imunda e obscena, léguas de execração,
não querem ir-se embora da lembrança.
Lotes alagadiços, barracas amontoadas como cães, charcos de prata fétida:
Sou a entediada sentinela desses paradeiros imóveis.
 
Arames, desaterros, papéis mortos, restos de Buenos Aires.
 
Creio esta noite na terrível imortalidade:
nenhum homem morreu no tempo, nenhuma mulher, nenhum morto,
porque esta inevitável realidade de ferro e de barro
tem de atravessar a indiferença dos que estão adormecidos ou mortos
– mesmo que se escondam na corrupção e nos séculos –
e condená-los a uma assombrada vigília.
 
Toscas nuvens cor de borras de vinho hão-de inflamar o céu;
Amanhecerá nas minhas pálpebras apertadas.
 
 
Androgué, 1936
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



15 junho 2023

jorge luís borges / o sono

 



 

Se o sono fosse (como dizem) uma
Pura trégua ou repouso para a mente,
Porque é que, se te acordam bruscamente,
Sentes que te roubaram a fortuna?
Porque é tão triste madrugar? A hora
Despoja-nos de um dom inconcebível,
Tão íntimo que só é traduzível
Numa modorra que a vigília doira
Com sonhos, que bem podem ser parciais
Reflexos dos tesouros que há na sombra
De um orbe intemporal que não tem nome
E que o dia deforma em seus cristais.
Quem serás esta noite no obscuro
Sono, do outro lado do seu muro?
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998
 



18 fevereiro 2023

jorge luís borges / bairro norte

 
 
Esta declaração é um segredo
vedado plo descuido e a inutilidade,
segredo sem mistério ou juramento
que apenas é assim por indiferença:
hábitos de homens e de anoiteceres detêm-no
e preserva-o o esquecimento, que é o modo mais pobre do mistério.
 
Houve um tempo em que o bairro era amizade,
um caso de aversões e afectos, como as outras coisas do amor;
mal persiste essa fé
nuns factos distantes que hão-de morrer:
na milonga que lembra as Cinco Esquinas,
no pátio como firme rosa sob os altos muros,
no letreiro desbotado que ainda diz La Flor del Norte,
nos rapazes de guitarra e baralho de cartas,
na trôpega memória de algum cego.
 
Este disperso amor é o nosso desanimado segredo.
 
Uma coisa invisível faz perecer o mundo,
um amor não mais amplo que uma música.
O bairro afasta-se de nós,
as baixas varandinhas de mármore não enfrentam o céu.
O nosso carinho acobarda-se em tédios,
e é outra a estrela de ar das Cinco Esquinas.
 
Mas sem ruído e sempre,
em coisas mudas e perdidas, como estão sempre as coisas,
no comerciante de borracha, com o seu listrado céu de sombra,
na taça que recolhe o primeiro e o último sol,
perdura este facto amistoso e prestável,
a lealdade obscura que os versos declaram:
o bairro.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. I
caderno san martín  (1929)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




21 novembro 2022

jorge luís borges / amorosa antecipação

 



 
Nem a intimidade da tua fronte clara como uma festa,
nem o hábito do teu corpo, ainda de menina e misterioso e tácito,
nem a sucessão da tua vida assumindo palavras ou silêncios
serão favor tão misterioso
como olhar o teu sono envolvido
na vigília dos meus braços:
Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono,
serena e resplandecente como a alegria que a memória escolhe,
dar-me-ás essa margem da tua vida que tu própria não tens.
Entregue à serenidade,
divisarei essa praia última do teu ser
e ver-te-ei acaso pla primeira vez
como Deus te verá,
já dissipada a ficção do Tempo,
sem o amor, sem mim.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
lua defronte  (1925)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




22 abril 2022

jorge luís borges / ein traum

 
 
Sabiam os três.
Ela era a companheira de Kafka.
Kafka tinha-a sonhado.
Sabiam os três.
Ele ara amigo de Kafka.
Kafka tinha-o sonhado.
Sabiam os três.
A mulher disse ao amigo:
«Quero que esta noite me desejes.»
Sabiam os três.
O homem respondeu-lhe: «Se pecamos,
Kafka deixa de nos sonhar.»
Um deles soube.
Na terra não havia ninguém mais.
Kafka disse:
«Agora que partiram ambos, fiquei só.
Deixarei de me sonhar.»
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a moeda de ferro (1976)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




03 novembro 2021

jorge luís borges / a quem já não é jovem

 
 
Já podes ver o trágico cenário
E cada coisa no lugar devido;
As cinzas e a espada para Dido
E a moeda para Belisário.
Porque vais procurando no brumoso
Bronze desses hexâmetros a guerra
Se estão aqui sete palmos de terra,
O abrupto sangue e o aberto fosso?
Aqui te espreita o insondável espelho
Que sonhará e esquecerá o velho
Reflexo das tuas agonias.
Cerca-te já o derradeiro. A casa
Onde essa lenta e breve tarde passa
E a rua que vês todos os dias.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




26 fevereiro 2021

jorge luís borges / uma rosa e milton

  
De tantas gerações de inúmeras rosas
Que se perderam no fundo do tempo
Quero roubar só uma ao esquecimento,
Uma sem marca ou sinal entre as coisas
Que existiram. Oferece-me o destino
O dom de nomear pla vez primeira
Essa flor silenciosa, a derradeira
Rosa que Milton do rosto aproxima
Sem ver. Ó amarela ou tu, vermelha,
Branca rosa de um jardim apagado,
Deixa magicamente o teu passado
Imemorial, e neste verso brilha,
Oiro, sangue ou marfim ou tenebrosa
Como nas suas mãos, oculta rosa.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





02 novembro 2020

jorge luís borges / o instante

 
 
Onde os séculos, onde o sonho estranho
Das espadas que os tártaros sonharam?
Onde as fortes muralhas que arrasaram,
Onde a Árvore de Adão e o cutro Lenho?
Está só o presente. E a memória
Erige o tempo. Sucessão e engano
É a rotina do relógio. O ano
Nunca é menos vão que a vã história.
Entre a alva e a noite há um abismo
De agonias, de luzes, de cuidados;
O rosto que se fita nos cansados
Espelhos nocturnais não é o mesmo.
O hoje fugidio e ténue é eterno;
Não esperes outro Céu, ou outro Inferno.
 
 
 
jorge luís borges
trad. josé bento
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




22 junho 2020

jorge luís borges / argumentum ornithologicum



     Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número? O problema envolve o da existência de Deus. Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros eu vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, porque ninguém pode fazer a conta. Nesse caso vi menos de dez pássaros (digamos) e mais de um, mas não vi nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três ou dois pássaros. Vi um número entre dez e um, que não é nove, oito, sete, seis, cinco, etc. esse número inteiro é inconcebível; ergo, Deus existe.




jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998









18 abril 2019

jorge luís borges / a uma moeda




Fria e tempestuosa a noite em que zarpei de Montevideu.
Ao dobrar o Cerro,
atirei do mais alto convés
uma moeda que brilhou e se afogou nas águas barrentas,
uma coisa de luz arrebatada pelo vento e pela treva.
Tive a sensação de ter cometido um acto irrevogável,
de acrescentar à história do planeta
duas séries incessantes, paralelas, talvez infinitas:
o meu destino, feito de soçobro, de amor e de vãs vicissitudes
e o daquele disco de metal
que as águas dariam ao suave abismo
ou aos remotos mares que ainda trituram
despojos dos saxões e dos viquingues.
A cada instante do meu sonho ou da minha vigília
corresponde outro da cega moeda.
Por vezes senti remorsos
e outras inveja
de ti, que estás, como nós, no tempo e no seu labirinto
e que não sabes isso.



jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





06 novembro 2018

jorge luís borges / a chuva




Está de súbito o dia clareado
Porque já cai a chuva minuciosa.
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que sem dúvida ocorre no passado.

Quem a ouve cair vê recuperado
Esse tempo em que a sorte venturosa
Lhe revelou uma flor chamada rosa
E a curiosa cor do encarnado.

Esta chuva que vai cegando os vidros
Alegrará em arredores perdidos
As uvas de uma parra em certo horto

Ou pátio já esquecido. Esta molhada
Tarde me traz a voz, voz desejada
Do meu pai que regressa e não está morto.



jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998







06 setembro 2018

jorge luís borges / poema




ANVERSO

Dormias. Eu acordo-te.
A manhã imensa oferece-nos a ilusão de um princípio.
Esqueceras-te de Virgílio. Aqui estão os hexâmetros.
Trago-te muitas coisas.
As quatro raízes dos Gregos: a terra, a água, o fogo, o ar.
Um só nome de mulher.
A amizade da lua.
As claras cores do atlas.
O esquecimento, que purifica.
A memória que escolhe e redescobre.
O hábito, que nos ajuda a sentir que somos imortais.
A esfera e as agulhas que dividem o intangível tempo.
A fragrância do sândalo.
As dúvidas a que chamamos, não sem alguma vaidade, metafísica.
A curva do bastão que a tua mão aguarda.
 O sabor das uvas e do mel.


REVERSO

Recordar quem dorme
é um acto vulgar e quotidiano
que poderia fazer-nos tremer.
Recordar quem dorme
é impor ao outro a interminável
prisão do universo
do seu tempo sem ocaso nem aurora.
É revelar-lhe que é alguém ou algo
que está sujeito a um nome que o expõe
e a um acervo de ontens.
É inquietar a sua eternidade.
É carrega-lo de séculos e estrelas.
É devolver ao tempo um outro Lázaro
carregado de memória.
É desonrar a água do Letes.




jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998










27 fevereiro 2018

jorge luís borges / os enigmas




Eu que sou o que agora está cantando
Irei ser amanhã o misterioso,
O morto, morador num silencioso
Deserto sem depois, antes ou quando.
Assim declara a mística. Mas eu
Creio-me indigno do Inferno ou Glória,
Embora nada afirme. A nossa história
Muda tal como as formas de Proteu.
Que errante labirinto, que brancura
Esplendorosa será a minha sorte
Quando me der o fim desta aventura
A curiosa experiência que é a morte?
Quero beber o cristalino Olvido,
Ser para sempre; mas nunca ter sido.



jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998








28 novembro 2017

jorge luís borges / beppo






O gato branco e solitário vê-se
nessa lúcida lua de algum espelho
e não pode saber que tal brancura
e esses nunca vistos olhos de ouro
são, afinal, a sua própria imagem.
Quem lhe dirá que o outro que o observa
é apenas um sonho desse espelho?
Eu penso que esses gatos harmoniosos,
o do mais quente sangue e o de vidro,
são simulacros que concede ao tempo
um arquétipo eterno. Assim afirma,
sombra também, Plotino nas Enéadas.
De que Adão anterior ao paraíso
E de que divindade indecifrável
somos nós, homens, um quebrado espelho?


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998









20 julho 2017

jorge luís borges / a prova




Do outro lado desta porta um homem
ignora a sua corrupção. À noite
elevará em vão alguma prece
ao seu curioso deus, que é três, dois, um,
e julgará que é imortal. Agora
ele ouve a profecia da sua morte
e sabe que é um animal sentado.
És esse homem, irmão. Agradeçamos
os vermes e o esquecimento.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




12 maio 2017

jorge luís borges / elegia



Sem que ninguém o saiba, nem o espelho,
ele chorou umas lágrimas humanas.
Não pode suspeitar que comemoram
todas as coisas que merecem lágrimas:
a beleza de Helena, que não viu,
o sempre irreparável rio dos anos,
a mão de Jesus Cristo no madeiro
de Roma, as velhas cinzas de Cartago,
o rouxinol dos húngaros e persas,
a ansiedade que aguarda, a breve sorte,
de marfim e de música, Virgílio
que cantou os trabalhos das espadas,
as configurações de tantas nuvens
de cada novo e singular ocaso
e a manhã que depois será tarde.
Do outro lado de uma porta um homem
feito de solidão, de amor, de tempo,
acaba de chorar em Buenos Aires
todas as coisas.



jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




30 março 2017

jorge luís borges / a trama



No segundo pátio
a torneira periódica goteja,
fatal como a morte de César.
Ambas são peças da trama que abarca
o círculo sem princípio nem fim,
a âncora do fenício,
o primeiro lobo e o primeiro cordeiro,
a data da minha morte
e o teorema perdido de Fermat.
Essa trama de ferro
pensaram-na os estóicos como um fogo
que morre e que renasce como a Fénix.
É a grande árvore das causas
e dos ramificados efeitos;
nas suas folhas estão Roma e Caldeia
e o que vêem os rostos de Jano.
O universo é um dos seus nomes.
Nunca ninguém o viu
e nenhum homem pode ver outra coisa.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998