19 novembro 2023

jorge luís borges / insónia

  
 
De ferro,
de encurvadas vigas de enorme ferro tem de ser a noite,
para que não a rebentem e a desentranhem
as muitas coisas que os meus olhos repletos já viram,
as duras coisas que insuportavelmente a povoam.
 
O meu corpo enjoou as passagens de nível, as temperaturas, as luzes:
Em vagões de longos caminhos-de-ferro,
num banquete de homens que se enfastiam,
no fio amolgado dos subúrbios,
numa abafada quinta com estátuas húmidas,
na noite repleta onde abundam os cavalos e os homens.
 
O universo desta noite tem a vastidão
do esquecimento e a precisão da febre.
 
Em vão desejo distrair-me do corpo
e dos desvelos de um espelho incessante
que o dissipa e o espreita
e da casa que repete os seus pátios
e do mundo que continua até ao degradado arrabalde
de barro torpe e de becos onde o vento se cansa.
 
Em vão aguardo
as desintegrações e os símbolos que antecedem o sono.
 
Prossegue a história universal:
os minuciosos rumos da morte nas cáries dentárias,
a circulação do meu sangue e dos planetas.
 
(Odiei a água libertina de um charco,
cansei-me ao entardecer com o canto dos pássaros.)
 
As fatigadas léguas sem fim do subúrbio do Sul,
léguas de pampa imunda e obscena, léguas de execração,
não querem ir-se embora da lembrança.
Lotes alagadiços, barracas amontoadas como cães, charcos de prata fétida:
Sou a entediada sentinela desses paradeiros imóveis.
 
Arames, desaterros, papéis mortos, restos de Buenos Aires.
 
Creio esta noite na terrível imortalidade:
nenhum homem morreu no tempo, nenhuma mulher, nenhum morto,
porque esta inevitável realidade de ferro e de barro
tem de atravessar a indiferença dos que estão adormecidos ou mortos
– mesmo que se escondam na corrupção e nos séculos –
e condená-los a uma assombrada vigília.
 
Toscas nuvens cor de borras de vinho hão-de inflamar o céu;
Amanhecerá nas minhas pálpebras apertadas.
 
 
Androgué, 1936
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998



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