29 novembro 2023

fernando pinto do amaral / sete degraus para a escada de jacob

 




 

2
 
Leve cresce uma sombra, a vã glória
de conquistar o inverno – sensação
fulgindo entre a folhagem. Um silêncio
no lusco-fusco, as vozes tão banais
ao longo da ruela. Anoitecida,
regressa a minha alma, o preto-e-branco
dos vultos infelizes retomando
os passos nos passeios, as conversas
que em vento se desfazem. Não importa
descrever a paisagem, ficar preso
a tudo o que nos fala, a este «dia
de inúteis agonias». Aqui estou,
horíssimas à espera, mãos nos bolsos,
como se alguém viesse. Ah, não, pra quê
o enigma de um amor em cada imagem?,
os êxtases da vida?, o choro?, o riso?,
a própria arte? De um ou de outro corpo
me fogem os versos, um incêndio. Tu
serás apenas isso, a tentação
de haver nos dedos chamas, outro céu
a desejar ainda. O que se afasta
do meu olhar são essas poucas luzes,
inanimadas frases prolongando
a silhueta efémera de um rosto
– agora?, há muito tempo? Sem resposta,
estrelas gerando estrelas, um negrume
vivendo-me certezas e receios,
o sabor de um destino ou, simplesmente,
um sonho iluminando-se de lágrimas,
um resto de horizonte nos meus olhos.
 
 
 
fernando pinto do amaral
sete degraus para escada de jacob
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000


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