(…)
O que é certo é que, daqui a uma hora, será tarde
de mais, daqui a meia-hora será noite, e ainda assim, não há a certeza, de quê,
a certeza absoluta de quê, de que a noite impeça impeça o que o dia permite,
àqueles que sabem governar-se, que querem governar-se, e que podem governar-se,
que podem continuar a tentar. O nevoeiro dissipar-se-á, eu sei, por mais
distraído que se esteja, o vento vai refrescar, quando a noite cair, e na
montanha haverá o céu nocturno, com as suas luzes, e as dias Ursas para me
servirem de guia, mais uma vez, de guia para os meus passos, esperemos pela
noite. Tudo se enreda, os tempos enredam-se, primeiro só lá tinha estado, agora
continuo a lá estar, daqui a pouco ainda lá estarei, penando a meia encosta, ou
nos fetais que bordejam o bosque, são larícios, não tento compreender, nunca
mais tentarei compreender, é assim que se diz, para já estou aqui, desde
sempre, para sempre, vou deixar de ter medo das palavras caras, não são nada
caras. Não me lembro de ter vindo, nunca poderei ir-me embora, estou de olhos
fechados e sinto na face o húmus áspero e húmido, caiu-me o chapéu, não caiu
longe, ou o vento levou-o para longe, apeguei-me muito às minhas coisas. Ora é
o mar, ora é a montanha, em muitas alturas foi a floresta, a cidade, e também a
planície, também já experimentei a planície, deixei-me ficar como morto em
todos os cantos, de fome, de velhice, assassinado, afogado, e também sem
motivo, muitas vezes sem motivo, de tédio, é coisa que dá alento, um derradeiro
suspiro, e depois os quartos da minha santa morte, na cama, derreado ao peso
dos meus penates, e resmungando sempre, as mesmas coisas, as mesmas histórias,
as mesmas perguntas e respostas, bom menino, bastante, no extremo do meu mundo
de ignorantes, nem uma imprecação, não, eu não era assim tão estúpido, ou então
já não me lembro.
(…)
samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006