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08 dezembro 2023

samuel beckett / sobressaltos


 
(…)
 
Tinha havido um tempo em que às vezes ele levantava a cabeça o suficiente para ver as mãos. O que havia delas para ver. Uma deitada sobre a mesa e a outra por cima dela. em repouso depois de tudo o que tinham feito. Levantava a antiga cabeça por um momento para ver as antigas mãos. Depois deitava-a outra vez sobre elas para que também ela repousasse. Depois de tudo o que tinha feito.
 
(...)
 
 
 
samuel beckett
sobressaltos
trad. miguel esteves cardoso 
o independente
05-01-1990




21 maio 2023

samuel beckett / sânie II

 
 
Havia uma terra de felicidade
o American Bar
na Rue Muffetard
havia lá ovos vermelhos
tenho um sujo quero dizer hemorróidas
regressando do banho
o vapor o deleite o refresco de sumo de frutas
a pena do velho corpo
magrizela, indolente feliz
à larga no meu velho fato
navegando indolente até Puvis a dupla fileira
                                                 [de tulipas
açoitem-me açoitem-me com tulipas amarelas
baixarei as minhas velhas calças
o meu amor coseu as algibeiras vivas vivas olé
                  [pois fê-lo dizendo que era melhor
e então imaculado deslizando dentro dos
                                       [farrapos castanhos
fresco e livre subindo o fiorde de ovos pintados
                                                        [e sinos
desapareço não sabias na taberna
as cavalas jogam bilhar gritam os pontos
a Barfrau produz grande impressão com o seu
                                            [enorme traseiro
estão lá Dante e a bem-aventurada Beatriz
antes da Vita Nuova
as bolas espadanam pouca sorte camarada
estão lá Gracieuse Belle-Belle pia abaixo
Percinet de botas com a sua queixada de
                                                        [cobalto
beijocam-se à lufa-lufa
sugar não é sugar que altere
lo Alighieri retira-se ao revoir a isso tudo
não consigo reprimir um risinho de despeito
escuta
silêncio terrível no salão
um frémito convulsiona Madame de la Motte
percorre sonoro as suas carnes
o grande traseiro silencia-se em espuma
depressa depressa as bengalas de cipó de
              [cavalete para o desconexo palavrório
vivas puellas mortui incurrrrrsant boves
oh súbito súbito antes que ela se recomponha
               [a golilha de bambu para a bastonada
uma fessade à la mode de lua amarga
oh Becky poupa-me não te fiz nenhum mal
                                          [poupa-me maldita
poupa-me boa Becky
manda às tuas víboras que parem Becky que
                          [eu te darei larga recompensa
Senhor tem misericórdia de
Cristo tem misericórdia de nós
 
Senhor tem misericórdia de nós
 
 
 
samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970

14 janeiro 2023

samuel beckett / dieppe

 



 

*
viva morte minha única estação
lírios brancos crisântemos
ninhos vivos abandonados
lama das folhas de abril
dias felizes pardos de geada
 
1947
 
 
 
samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago nr.13
10/2003 alexandre o’neill
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003





18 abril 2022

samuel beckett / onde iria, se pudesse ir…

 
 
 
Onde iria, se pudesse ir, que seria, se pudesse ser, que diria, se tivesse uma voz, quem é que fala assim, dizendo que sou eu? Respondam simplesmente, haja alguém que responda simplesmente. É o mesmo desconhecido de sempre, o único para quem existo, nas profundezas da minha inexistência, da sua inexistência, da nossa, ora aí está uma resposta simples. Não é pensando que me encontrará, mas que pode ele fazer, vivo e perplexo, sim, vivo, diga o que disser. Esquecer-me, ignorar-me, sim, seria o mais sensato, é perito nisso. Porquê esta súbita amabilidade após tanto abandono, é fácil de compreender, é o que ele diz, mas não compreende. Não estou na sua cabeça, não estou em parte nenhuma do seu velho corpo, e, no entanto, estou aqui, para ele estou aqui, com ele, donde tanta confusão. Deveria contentar-se em ter-me reencontrado ausente, mas não, quer-me aqui, com uma forma e um mundo, como ele, sem querer, eu que sou tudo, como ele que não é nada. e quando me sente sem existência, é da sua que ele me quer privado, e vice-versa, louco, louco, é louco. Na realidade anda à minha procura para me matar, para eu estar morto como ele, morto como os vivos. Sabe que é assim, mas não serve de nada saber, eu não sei, não sei nada. Evita raciocinar, mas só raciocina, falso, como se isso pudesse ajudar. Julga balbuciar, claro que balbucia. Conta a sua história de cinco em cinco minutos, dizendo que não é sua, vejam lá a esperteza. Gostaria que fosse eu a impedi-lo de ter uma história, claro que ele não tem história, mas será razão para querer impingir-me uma? É assim que ele raciocina, passando ao lado, sim, sim, mas, o que tem de se ver é passando ao lado de quê. Faz-me falar dizendo que não sou eu, vejam só o exagero, obriga-me a dizer que não sou eu, a mim que não digo nada. é grosseria a mais.
 
(…)
 
 
 
samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006




07 dezembro 2021

samuel beckett / vêm

 
 
 
vêm
diferentes e parecidas
com cada uma é diferente e parecido
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é parecida
 
 
 
samuel beckett
trad. miguel esteves cardoso
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





25 março 2021

samuel beckett / o que é certo…

 
 
(…)
 
O que é certo é que, daqui a uma hora, será tarde de mais, daqui a meia-hora será noite, e ainda assim, não há a certeza, de quê, a certeza absoluta de quê, de que a noite impeça impeça o que o dia permite, àqueles que sabem governar-se, que querem governar-se, e que podem governar-se, que podem continuar a tentar. O nevoeiro dissipar-se-á, eu sei, por mais distraído que se esteja, o vento vai refrescar, quando a noite cair, e na montanha haverá o céu nocturno, com as suas luzes, e as dias Ursas para me servirem de guia, mais uma vez, de guia para os meus passos, esperemos pela noite. Tudo se enreda, os tempos enredam-se, primeiro só lá tinha estado, agora continuo a lá estar, daqui a pouco ainda lá estarei, penando a meia encosta, ou nos fetais que bordejam o bosque, são larícios, não tento compreender, nunca mais tentarei compreender, é assim que se diz, para já estou aqui, desde sempre, para sempre, vou deixar de ter medo das palavras caras, não são nada caras. Não me lembro de ter vindo, nunca poderei ir-me embora, estou de olhos fechados e sinto na face o húmus áspero e húmido, caiu-me o chapéu, não caiu longe, ou o vento levou-o para longe, apeguei-me muito às minhas coisas. Ora é o mar, ora é a montanha, em muitas alturas foi a floresta, a cidade, e também a planície, também já experimentei a planície, deixei-me ficar como morto em todos os cantos, de fome, de velhice, assassinado, afogado, e também sem motivo, muitas vezes sem motivo, de tédio, é coisa que dá alento, um derradeiro suspiro, e depois os quartos da minha santa morte, na cama, derreado ao peso dos meus penates, e resmungando sempre, as mesmas coisas, as mesmas histórias, as mesmas perguntas e respostas, bom menino, bastante, no extremo do meu mundo de ignorantes, nem uma imprecação, não, eu não era assim tão estúpido, ou então já não me lembro.
 
(…)
 
 
 
 
samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006





23 julho 2019

samuel beckett / bebe sozinho



bebe sozinho
incha arde fornica rebenta só como defronte
dos ausentes mortos os presentes fedem
retira os olhos e lança-os sobre os juncos
se eles se divertem ou se dão lamentos
pouco te importe existe o vento
e o estado de vigília


samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970









14 julho 2018

samuel beckett / os ossos de eco




asilo sob os meus passos este dia inteiro
os seus folguedos abafados enquanto a carne
                                                       [se desmorona
arrotando sem receio sem favor
percorrida a punitiva fileira da sensatez e
                                                              [insensatez
Tomados pêlos vermes por aquilo que são

1935




samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970








31 julho 2017

samuel beckett / dortmunder



No mágico homérico crepúsculo
para além do pináculo vermelho do santuário
Eu nulo era velho navio real
apressamo-nos a ir à lâmpada violeta ao som
                   [esganiçado da música K'in da proxeneta.
Ela está de pé perante mim na barraca
                                             [iluminada
sustentando os estilhaços de jade
signaculum escalavrado da quietude da pureza
os olhos olhos pretos até que o oriente plagal
resolva a longa frase da noite.
Depois, como um rolo, enrolado
e a glória da sua dissolução ampliada
em mim, Habacuque, excremento de todos os
                                                           [pecadores.
Schopenhauer morreu, a proxeneta
guarda o alaúde.


samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970



17 abril 2017

samuel beckett / tédio II



mundo mundo mundo mundo
e o rosto grave
nuvem contra o anoitecer

de morituris nihil nisi

e o rosto esfarelando-se tímido
tarde de mais para obscurecer o céu
corando pela noite dentro
estremecendo como uma gafe

veronica mundi
veronica munda
dá-nos uma enxugadela por amor de Jesus

suando como Judas
cansado de morrer
cansado de polícias
pés na marmelada
suando em profusão
coração na marmelada
fuma mais fruta
o velho coração o velho coração
despedaçando-se fora do congresso

doch asseguro-te
deitado na ponte O’Connell
de olhos arregalados para as tulipas da noite
as tulipas verdes
reluzindo ao dobrar da esquina como um
                                                           [carbúnculo
reluzindo nos batelões de Guinness

a sugestão o rosto
tarde de mais para abrilhantar o céu
doch doch asseguro-te




samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970



12 dezembro 2016

samuel beckett / o abutre




Arrastando a sua fome através do céu
do meu crânio concha de céu e da terra

mergulhando sobre os tombados de borco
que breve deverão retomar a vida e andar

escarnecido por um tecido que poderá não   
                                                                      [servir
até que a fome a terra e o céu se convertam
                                                             [em refugo




samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970



10 outubro 2016

samuel beckett / há nela o acto calmo



há nela o acto calmo
os poros sábios o sexo bom rapaz
a espera nunca lenta de mais os ais demasiado
                                                                       [longos
a ausência
ao serviço da presença
alguns farrapos de azul na cabeça pontos
                  [finalmente mortos do coração
toda a graça tardia da chuva que cessa
ao cair de uma noite
de Agosto

há nela vazio
ele puro
de amor


samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970



13 fevereiro 2015

samuel beckett / worstward ho


2/
Primeiro o corpo. Não. Primeiro o lugar. Não. Primeiro ambos. Ora um deles. Ora o outro. Até fartar de um deles e tentar o outro. Até fartar também deste e fartar outra vez de um deles. Assim em diante. Dalgum modo em diante, até fartar de ambos. Vomitar e partir. Para onde nem um nem outro. Até fartar desse lugar. Vomitar e voltar. Outra vez o corpo. onde nenhum. Outra vez o lugar. Onde nenhum. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Melhor outra vez. Ou melhor pior. Falhar pior outra vez. Ainda pior outra vez. Até fartar de vez. Vomitar de vez. Partir de vez. Onde nem um nem outro de vez. De vez e tudo.



samuel beckett
últimos trabalhos de samuel beckett
tradução de miguel esteves cardoso
o independente / assírio & alvim
1996




20 janeiro 2015

samuel beckett / worstward ho


Em diante. Dizer em diante. Ser dito em diante. Dalgum modo em diante. Até de modo nenhum em diante. Dito de modo nenhum em diante.

Dizer por ser dito. Desdito. De ora em diante dizer por ser desdito.

Dizer um corpo. Onde nenhum. Mente nenhuma. Onde nenhuma. Ao menos isso. Um lugar. Onde nenhum. Para o corpo. Estar lá dentro. Morrer-se lá dentro. E sair. E voltar lá para dentro. Não. Sair nenhum. Voltar nenhum. Só entrar. Ficar lá dentro. Em diante lá dentro. Parado.

Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.



samuel beckett
últimos trabalhos de samuel beckett
tradução de miguel esteves cardoso
o independente / assírio & alvim
1996





31 julho 2014

samuel beckett / elas vêm



elas vêm
outras e as mesmas
com cada uma é diferente e é o mesmo
com cada uma a ausência de amor é diferente
com cada uma a ausência de amor é a mesma

1937
  



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003




04 março 2014

samuel beckett / sou esta areia que se esvai



sou esta areia que se esvai
entre o cascalho e a duna
a chuva de Verão chove-me na vida
sobre mim a vida que me foge persegue-me
e vai acabar no dia do começo


caro instante vejo-te
nesta névoa que se levanta
quando não tiver de pisar estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha

1948



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



29 novembro 2013

samuel beckett / algo ali



algo ali
onde
ali fora
ali onde
fora

o quê
a cabeça que algo senão
algo algures ali fora
a cabeça

ao mais leve mais breve som
já não está e o globo ocular
ainda não nu
o olho abre-se muito
muito
até que por fim
nada mais
o volta a cerrar

assim às vezes
ali fora
algures ali fora
tal como se
como se
algo não a vida
necessariamente

1974



samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



25 julho 2013

samuel beckett / mais depressa que onde



mais depressa que onde
nas espiras dos olhos
corre até
gelado no carril
da mandíbula
roer o ranger
dos dentes com o
claque-claque da cegonha

que atravessa
o sentido ido
e o olho
esbugalhado
do branco
por desnudar
tremor pavor
nem a nada

súbito dentro
macio de cinza
pânico
cintila dilacera
e de súbito
re macio
tremor passado
nunca sido

do raio
num latíbulo
há tanto escuro
tremor pavor
até que a brecha
cerrada
re escura
re queda

assi aqui
muito queda
muito nada
lacerada assi
assi sacudida
passada
cabeça amarra
in ex quasi morta

1974


samuel beckett
trad. manuel portela
relâmpago” nr.13
10/2003



02 junho 2013

samuel beckett / pavor nem




cabeça amarra
in ex quasi morta
até lacerar
muito quedo
leve tremor
descerra o olho
que re quedo
re cerra

cabeça redonda
macio de cinza
um olho
nem sabe quando
logo ofuscado
ciclope não
de lado
o susto

no rosto
se ex tende
imenso na
maior
brancura de neve
lençolando tudo
cabeça de asilo
única mácula



samuel beckett
relâmpago” nr.13
trad. manuel portela

10/2003


13 julho 2012

samuel beckett / pra lá






     pra lá
     muito longe
     para alguém
     tão pequeno
     belos narcisos
     partir então

     aí sem mais
     aí sem mais

     depois daí
     narcisos
     de novo
     partir então
     de novo
     muito longe
     de novo
     para alguém
     tão pequeno

     1976


   

samuel beckett
relâmpago” nr.13
trad. manuel portela
10/2003