25 março 2021

samuel beckett / o que é certo…

 
 
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O que é certo é que, daqui a uma hora, será tarde de mais, daqui a meia-hora será noite, e ainda assim, não há a certeza, de quê, a certeza absoluta de quê, de que a noite impeça impeça o que o dia permite, àqueles que sabem governar-se, que querem governar-se, e que podem governar-se, que podem continuar a tentar. O nevoeiro dissipar-se-á, eu sei, por mais distraído que se esteja, o vento vai refrescar, quando a noite cair, e na montanha haverá o céu nocturno, com as suas luzes, e as dias Ursas para me servirem de guia, mais uma vez, de guia para os meus passos, esperemos pela noite. Tudo se enreda, os tempos enredam-se, primeiro só lá tinha estado, agora continuo a lá estar, daqui a pouco ainda lá estarei, penando a meia encosta, ou nos fetais que bordejam o bosque, são larícios, não tento compreender, nunca mais tentarei compreender, é assim que se diz, para já estou aqui, desde sempre, para sempre, vou deixar de ter medo das palavras caras, não são nada caras. Não me lembro de ter vindo, nunca poderei ir-me embora, estou de olhos fechados e sinto na face o húmus áspero e húmido, caiu-me o chapéu, não caiu longe, ou o vento levou-o para longe, apeguei-me muito às minhas coisas. Ora é o mar, ora é a montanha, em muitas alturas foi a floresta, a cidade, e também a planície, também já experimentei a planície, deixei-me ficar como morto em todos os cantos, de fome, de velhice, assassinado, afogado, e também sem motivo, muitas vezes sem motivo, de tédio, é coisa que dá alento, um derradeiro suspiro, e depois os quartos da minha santa morte, na cama, derreado ao peso dos meus penates, e resmungando sempre, as mesmas coisas, as mesmas histórias, as mesmas perguntas e respostas, bom menino, bastante, no extremo do meu mundo de ignorantes, nem uma imprecação, não, eu não era assim tão estúpido, ou então já não me lembro.
 
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samuel beckett
novelas e textos para nada
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2006





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