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29 janeiro 2024

adonis / ruínas

 
 
A lua quebra os seus espelhos nas ruínas enquanto Beirute faz
muletas de sangue e cinzas e coxeia com elas.
 
É verdade. O céu tem correntes à volta dos pés, e as estrela
têm adagas presas na cintura.
 
O dia esfrega os olhos, sem acreditar no que vê.
 
Chora, Beirute, limpa as tuas lágrimas com o lenço do hori-
zonte. Escreveste de novo ao céu, mas estavas errada e agora os
teus erros escrevem-te.
 
Não tens um outro alfabeto?
 
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016
 




10 janeiro 2023

adonis / ararat



 
Ararat – poeiras otomanas espalham-se todos os dias sob os
          teus pés
Diz sim à luz esse nobre profeta que brota das tuas entranhas
          para iluminar as trevas da História.
 
                                      *

Tempo suspenso sinos e chocalhos no pescoço dos ventos
Um sino diz: mata as tuas recordações antes que elas te matem
Um outro diz: não retenhas a memória senão para a transfor-
          mar em fontes
Inventando o teu presente tu inventas o caminho para o que
          irá acontecer
 
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016




 

03 janeiro 2022

adonis / portanto

 
 
Portanto,
Que o prazer seja um prefácio do que nos espera no invisível.
«A vida é redonda, como uma maçã», diz-nos essa língua
eis-nos feitos menos que uma sombra,
a origem não passa já de um pálido e miserável eco,
o país na sua totalidade é reflexo de uma sombra, sombra de
        um reflexo
abre os teus olhos indivíduo para te convenceres de que não
        te pertencem
 
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016




 

15 março 2021

adonis / os dois poetas

 
 
Na cidade branca
Entre as migalhas de pão
Habitam dois poetas
O primeiro é negro – lua quebrada
De que as baleias procuram os restos
 
O outro é branco – tal uma criança
Dorme todas as noites
Com uma serpente negra
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





 

08 dezembro 2020

adonis / seis notas do lado do vento

 
 
6
 
                Geograficamente, pertenço a um país situado na metade oriental do mundo. Mas se sou nativo desse Oriente, é antes de mais porque crio o meu próprio Oriente. Não lhe pertenço senão na medida em que ele próprio me pertence. Esse Oriente é ao mesmo tempo memória e esquecimento, presença e ausência. Afirma o caos de que não se sabe se é a argila ou a mão, a luz ou a noite, o nada ou o tudo. O Oriente para mim é o indefinível, a extensão vaga, o homem na sua errância original. Quando penso nele, interrogo-me: a poesia, nos seus múltiplos modos, pode não significar esse Oriente?
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016




 

03 fevereiro 2020

adonis / seis notas do lado do vento




5

                Escrevo em árabe. Nesta língua, a presença identifica-se com o invisível. O mundo está aí ausente, embora visível. O homem, segundo esta visão, é um estado continuado de ausência. A verdade reside no seio da língua enquanto desvendar da essência do mundo através das palavras de que Deus fez uso. Neste sentido, o próprio ser é aí uma língua. Os vivos estão adormecidos, hão-de despertar depois da morte. Escrever poesia nessa língua, e segundo o seu génio, é desvelar o invisível e o abismo da ausência que nos separa dele. Escrever poesia é prender-se a dizer uma «coisa», e essa «coisa» em árabe é o próprio abismo e o invisível. Se a poesia tem algum poder de fundar, funda aqui a presença do invisível. A escrita, em árabe, ensina apenas que a pátria não é um lugar, que não se situa em parte nenhuma. Ensina que é ela própria a pátria. Ensinou-me como poderia dizer: o meu corpo é o meu país.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016






15 novembro 2019

adonis / seis notas do lado do vento




4

                A poesia, nos nossos dias, expõe-se a um perigo que não vem dela, mas da palavra que se lhe refere. Ela é ofuscada por essa palavra. O leitor já não lê o poema, lê o poeta, as suas referências, as suas inclinações. Lê o que lhe declaram do poeta e da poesia. O poeta tornou-se para o crítico um meio de afirmar as suas opções, de expor as suas teorias, não de dar acesso ao poema enquanto tal. Trata-se aqui de uma crítica que decifra a poesia por intermédio do mundo. A verdadeira crítica é o seu oposto, desvenda o mundo através da poesia. Acede às energias da própria língua sem outro instrumento que não seja só a poesia.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





14 março 2019

adonis / seis notas do lado do vento



3

                Da boca da natureza saem as coisas; da boca do homem, as palavras. Entre essas palavras e essas coisas, como será possível o encontro? Alguns sonham com isso, e escrevem essa ilusão como se se tratasse de uma certeza. Outros negligenciam a natureza para só habitar dentro da língua, ou negligenciam a língua para se confinarem às coisas. Outros enfim vivem, pensam e escrevem no espaço que separa para sempre a palavra da coisa. A este respeito, uma palavra de Lichtenberg me retém: «Não encher a cabeça, mas fortifica-la.» Cada coisa esforça-se por encher a cabeça do mundo: as religiões, as ciências, as ideologias, as técnicas. Escrever um poema é fortificar a cabeça do mundo, fora dessa plenitude.



adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





30 janeiro 2019

adonis / seis notas do lado do vento




2

                O abismo ensinou-me que não podemos compreender um problema a não ser por intermédio de um outro problema e através dele, como se o homem não avançasse indo do obscuro para a luz, como é hábito pensar, mas dirigindo-se para uma outra espécie de obscuro, menos espesso. Essa diferença entre duas obscuridades, chamamos-lhe luz. Felizmente para o homem e para a poesia, não existe claridade suficiente para apagar o obscuro no homem e nas coisas. Se a claridade se tornasse senhora do mundo, a vida seria alterada, e a poesia desfeita.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016







30 agosto 2018

adonis / seis notas do lado do vento




I

                Que a poesia seja uma viagem aos confins do fora ou até ao mais íntimo do dentro, vivi nela, desde o início da minha empresa, um dentro que é no seu todo um fora, um fora indissociável do dentro. Senti porém que esse acto de escrita me exprimia menos do que designava o que eu queria exprimir de mim próprio, e o meu sentimento não variou desde então. A poesia, aos meus olhos, completa o homem, não é em nada a sua imagem. Não tinha nenhuma preocupação em criar uma harmonia entre o mundo e eu, mas tinha sempre o olhar fixo no abismo que se situa entre nós. Não escrevi portanto poesia no desígnio de encher esse abismo, mas como errância dentro dele e como exploração. Embora seja solicitado pela busca do sentido, ou de um sentido, adivinho que a minha identidade não se estabelece no que é estável, mas no que se move. Sinto que estou do lado do vento e da vaga.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016







01 janeiro 2018

adonis / vi como parte a folhagem e fica a árvore




Vi como parte a folhagem e fica a árvore
como parte o fruto e ficam as raízes
como se multiplicam as raízes nos campos do UNO do único
as barcas estão prontas para se prosternarem ou para invadir.
todos os seres são anjos e cada um se pergunta:
mas onde está o diabo?


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016









04 outubro 2017

adonis / movimento



Viajo para fora do meu corpo e dentro de mim há continentes
que não conheço. O meu corpo
é um eterno movimento no exterior de si.
Não pergunto: De onde? Ou onde estavas? Pergunto, para
                                                                      [onde vou?
A areia olha-me e transforma-me em areia,
E a água olha-me e irmana-me com ela.

Na verdade, não há nada para obscurecer a não ser a memória



adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016




08 dezembro 2016

adonis / ocidente-oriente



Era algo que se estendia no túnel da História,
Algo enfeitado e minado
Levando seu menino de nafta envenenado,
Por venenoso mercador cantado;
Era um Oriente – criança que pede,
Grita «Socorro!»
E o Ocidente, seu senhor nunca errado –
Mudado está agora este mapa;
O Universo em chamas,
Oriente-Ocidente: um só
Túmulo
Em cinza os tem juntado…


adonis
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de doina zugravescu
assírio & alvim
2001



25 outubro 2016

adonis / salmo



Levo comigo o meu abismo e ando. Reduzo a nada os caminhos que chegam ao fim, abro os caminhos longos como o ar, como a poeira, fazendo nascer inimigos dos meus passos, inimigos à minha medida. O abismo é o meu travesseiro, as ruínas são os meus ascensores.

Na verdade, sou a morte.

As orações fúnebres são as minhas fórmulas. Apago e espero quem me apagará. Nenhum desvio no meu fumo e nos meus sortilégios. Assim vivo na memória do ar.

Descubro uma cadência e um timbre para a nossa época.

(época que se esfarela como a areia e se solda como o metal época de nuvens chamadas rebanhos, de placas de zinco chamadas cérebros, época de submissão e de miragens, de marionetes e de espantalhos, época do instante glutão, época de uma queda sem fundo).

Não tenho artéria para esta época. Sou disperso e nada se parece comigo.

Crio uma ardência semelhante ao estertor do leviatã.

Vivo secretamente no seio de um sol por vir. Protejo-me com a infância da noite, abandonando a cabeça nos joelhos da manhã. Fujo e escrevo os livros do êxodo. Nenhuma promessa me espera.

Sou profeta e semeador de dúvidas.

Amasso a levedura da queda. Deixo o passado ao seu declínio e fixo a minha escolha sobre mim próprio. Distendo a época e enrolo-a. Chamo-a ó gigante monstruoso, ó monstro gigante. E rio e choro.

Sou argumento contra a época.

Apago os rastos e as manchas do meu ser interior. Lavo-o, limpo-o, deixo tudo em branco. Assim vivo no mais profundo de mim próprio.

As minhas veias alimentam-se de um derrame de sangue e não há lugar para mim entre os mortos. A vida é a minha vítima e não sei como morrer – o meu tempo está escondido, está sob os meus olhos. Ontem entrei no rito das ondas e a água era a minha chama.

Apresso-me porque a morte me persegue mobilizando os seus ventos entre os meus olhos. Rio com ela e choro no bater das minhas pestanas. Ah! Morte histriónica, morte carpideira!

Sei que estou no coração da morte, que me absorvo no túmulo, que bato contra as palavras. Mas vivo – outros que não eu sabem-no.

Ataco, desenraízo, passo, desafio. Aí onde passei caem as cataratas de um outro mundo. Aí onde passo está a morte, o beco sem saída.

Permanecerei assim – cercado por mim próprio.



adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016





19 julho 2010

adonis / um espelho para o século xx






Um caixão com a cara de um rapaz
Um livro
Escrito no ventre de um corvo
Um animal selvagem escondido numa flor

Um rochedo
A respirar com os pulmões de um lunático:

É isto
É isto o Século Vinte






adonis
a palavra interdita
trad. maria de lurdes guimarães
campo das letras
2001