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14 dezembro 2021

luis garcia montero / canção 2001

 
 
Os jornais são
longas noites de inverno.
 
As minhas palavras ardem no lume.
 
E nos televisores
chove no molhado,
precisamente ali onde a terra
não conhece a chuva.
 
O frio do sermão
descobriu rosas, castigos e milagres
nas regras impuras da objectividade,
e agora vende notícias
em vez de areia branca nos passos do náufrago
ou liberdade nos cemitérios.
 
São as regras
e o mar não as esquece.
Espero-te à luz de um passado imperfeito.
Chegas pelas sombras de um futuro perdido.
 
 
 
luis garcia montero
a intimidade da serpente (2003)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018




 

23 dezembro 2020

luis garcia montero / tento sem companhia, reabitar uma cidade

 
 
Penso na solução confusa deste céu,
a chuva quase a cair no olhar
frouxo que as raparigas me dirigem
acelerando o passo, solitária,
no meio do sotaque que se escapa
como um gato pacífico
do meio das conversas.
E também penso em ti. É a exigência
de atravessar esta praça, à tarde, Buenos Aires
com nuvens e mil cavalos no céu,
cinco anos depois
de nós a termos conhecido.
 
Os que vêm de fora continuam a ver
este largo resumo de todas as cidades,
rios que de tão grandes
já não esperam o mar para sentir a morte,
cafés que encerraram
a imitação nostálgica do mundo,
com mesas de bilhar e habitantes que vivem
falando das suas perdas em voz alta.
 
Enquanto as pessoas correm para se refugiarem
da chuva, empurrando-me,
penso desorientado
na dor deste país incompreensível
e recordo a nuvem
das tuas perguntas e as tuas profecias,
seladas com um beijo,
na Plaza de Mayo
a caminho do hotel.
 
Testemunhas invisíveis para um sonho,
fizemos a promessa
de regressar ao fim de uns anos.
Parecias então
eterna e eleita,
como um qualquer destino inevitável,
e tomavas nota do número do nosso quarto.
Agora,
quando peço a chave do meu
e a alga da luz no vestíbulo
é chuva rancorosa,
vivo confusamente o desembarque
da melancolia,
em parte por ti, em parte porque é o tempo
água que nos fabrica e nos desfaz.
 
 

luis garcia montero
as flores do frio (1991)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018
 



28 agosto 2018

luís garcia montero / espelhos




                   Para Luis Muñoz



Não importa se dormiste pouco ou muito,
os espelhos de hotel nunca perdoam
e são como animais de montanha
que não aceitam o convívio dos homens.

A luz dos espelhos familiares
compadece-se de nós, porém,
ajuda-nos a fingir, e por afecto
ou por hábito consegue perdoar-nos.

Eu sei que os espelhos são a água
estagnada de um rio que se move.
E vi como o sol que se reverbera
pode ocultar o lodo das sombras.

Mas quem espreita o fundo dos teus olhos
vê as gretas do tempo, as aranhas
de um passado que surge inesperado
em manhã de hotel e nos ofende.

Para quê responder. Feche os olhos,
porque não há outra coisas que envelheça
pior do que o teu olhar.



luis garcia montero
quartos separados (1994)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018







13 maio 2007

sonata triste para a lua de granada



a Marga

"Le ciel est par-dessus le toit."

paul verlaine







Esta cidade fita-me com os teus olhos,
pestaneja,
porque agora depois de tanto tempo
vejo outra vez o piano que sai de casa
e me chega de forma diferente,
abordando as ruas
desta cidade antiga e tão formosa,
que permanece solitária como a desejaste,
carregando com as suas praças
entre as margens perdidas do anseio,
ao abrigo do mar.
Se estivesses aqui
nada teria mudado senão o tempo
o estranho cadáver dos seus rios
que continuam submersos
como os deixaste.

Agora
sinto outra vez o corpo encher-se de cata-ventos
e vejo-o estendido
sobre gerações de janelas antigas
enquanto a noite avança solitária e perfeita.
Somos de uma cidade
carregada de paciência,
que não conhece o sonho dos jardins de inverno,
nem viveu a estranha presença do amor.
Como pequenas veias
as lojas esperam amanhã para abrir
e o desejo não existe
mais além da lua das vitrines.
Já sonhámos o que havia para sonhar,
vivemos aqui
onde a história esquece os seus carris vazios,
onde a paz é negra e se recolhe
em praças fechadas,
próximo de tabernas velhas,
na orla habitada do mistério.
Uma vez ou outra sonhamos
com um mundo diferente:
era na altura o império perdido do açúcar
e chegavam viajantes
atraídos pelo cheiro da indústria.
As ruas encherem-se de motores ruidosos
e a frivolidade
como uma trepadeira brilhante no olhar
ofereceu-nos de súbito
carne tépida, candelabros.
Parece que os lembro
abraçados ao mundo em fatos de linho,
na pele formosa de uma época
que nos deixou as suas árvores,
o coração gravado
nas cigarreiras e uma dedicatória
nas fotografias.

Agora
quando o destino já não é uma desculpa,
apenas solidão,
e os céus estão sob o telhado
como os deixaste,
tudo recorda um sonho sujo
de madrugada.
Aqui não tivemos batalhas senão a espera.
A guerra foi um camião que nos buscava,
parado à porta,
partindo com os olhos acesos
de espião
ao abrigo do mar.

Mais tarde
entre canções tristes de marinheiros louros
tudo ficou adormecido.
De varanda a varanda
ouvimos o pós-guerra pela rádio,
e longe,
sob as cruzes frias das praças,
antigas sombras negras passeavam,
segurando nas mãos
a nossa sobrevivência.

Esta cidade é íntima, formosamente obscena.
e as tuas mãos são pálidas
latejando nela
e a tua pele amarelenta, queimada do tabaco,
que lembra agora
A luz artificial da iluminação.
Volto para ti. Meu coração de mocho
recebem-no as sua pernas.
Como testemunhos silenciosos da história
afago as cúpulas perdidas,
palácios em ruínas,
fontes velhas
que recebem a lua
onde vão esconder-se os últimos abraços.
Verdes no cansaço
de todas as esquinas
esta cidade fita-me com os teus olhos de musgo,
surpreende-me tranquila
de amor e provoca-me.

Amanhece
um dia violáceo
que as ruas repartem com a chuva.
A solidão respira para lá
das gruas
e o meu corpo estende-se
numa luz em cio que adivinha
os lábios da serra,
a roupa nas torres de Granada.
A madrugada deixa
rastos de penumbra entre as mãos.

Oiço
uma voz que amanhece. Lentamente
os telhados sorriem cada vez mais extensos,
e assim,
como uma onda,
de entre a nuvem aberta de todos os arredores,
esta cidade surge nas alamedas,
sob os picos mais altos
onde a neve aguarda
que suba o mar, que nasça a maré.












luis garcia montero
tradução de manuel rodrigues