23 dezembro 2020

luis garcia montero / tento sem companhia, reabitar uma cidade

 
 
Penso na solução confusa deste céu,
a chuva quase a cair no olhar
frouxo que as raparigas me dirigem
acelerando o passo, solitária,
no meio do sotaque que se escapa
como um gato pacífico
do meio das conversas.
E também penso em ti. É a exigência
de atravessar esta praça, à tarde, Buenos Aires
com nuvens e mil cavalos no céu,
cinco anos depois
de nós a termos conhecido.
 
Os que vêm de fora continuam a ver
este largo resumo de todas as cidades,
rios que de tão grandes
já não esperam o mar para sentir a morte,
cafés que encerraram
a imitação nostálgica do mundo,
com mesas de bilhar e habitantes que vivem
falando das suas perdas em voz alta.
 
Enquanto as pessoas correm para se refugiarem
da chuva, empurrando-me,
penso desorientado
na dor deste país incompreensível
e recordo a nuvem
das tuas perguntas e as tuas profecias,
seladas com um beijo,
na Plaza de Mayo
a caminho do hotel.
 
Testemunhas invisíveis para um sonho,
fizemos a promessa
de regressar ao fim de uns anos.
Parecias então
eterna e eleita,
como um qualquer destino inevitável,
e tomavas nota do número do nosso quarto.
Agora,
quando peço a chave do meu
e a alga da luz no vestíbulo
é chuva rancorosa,
vivo confusamente o desembarque
da melancolia,
em parte por ti, em parte porque é o tempo
água que nos fabrica e nos desfaz.
 
 

luis garcia montero
as flores do frio (1991)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018
 



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