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16 agosto 2023

Isabel de sá / memória de infância

 
 
O corpo do rapaz irradiava um esplendor juvenil. Os músculos eram macios, a pele coberta por uma penugem ainda leve.
 
Atravessáramos o Inverno absorvidos pela ânsia de conhecimento. Não seria especialmente a ternura ou o afecto que nos unia, antes a aventura dos corpos no extremo da adolescência. Ele tinha uma forma peculiar e sensível de brincar com os meus cabelos muitos lisos, fazendo passar por eles os dedos como agulhas. Este corpo de rapaz vivera no poema.
 
Um mamilo pequeno e claro trouxera à minha pele lenta memória de infância: a menina que um dia me tomara por recém-nascido alimentando-me do sue brevíssimo seio.
 
Chegara Setembro com a poalha ténue do entardecer. Nossos corpos entravam no estado adulto onde cada um procurava o poema, isolado numa solidão própria.
 
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
em nome do corpo 1985
officium lectionis edições
2022
 




07 dezembro 2022

isabel de sá / farrapos de magia

 
 
 
Utilizar palavras num contexto sabiamente explorado, pode destruir a inibição e dar prazer. Se ao despir uma palavra me atrai o seu encanto é porque o erotismo faz parte do livro. Sou, assim, um duplo ser obedecendo a um impulso interior sem que isso traga consigo a decadência.
 
Não se trata já de manter relações com a escrita, o seu conteúdo, mas de possuir e dominar as palavras, esses farrapos de magia.
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
o duplo dividido 1989
officium lectionis edições
2022
 



27 setembro 2022

Isabel de sá / a cinza de luz é tanta

 



 
A cinza de luz é tanta que não posso abandonar-me.
 
Lento sofrimento este
sem tocar dedos de sombra, queimadura ou luva.
Ou respirar de outro ser tão fluido, desolado e frio.
 
Chegou a hora de minha alma não ser ela.
Chegou o tempo de meu corpo não ter corpo
e em silêncio ser de luz, poeira.
 
 
 
isabel de sá
semente em solo adverso (poesia reunida)
restos de infantas 1979-1980
officium lectionis edições
2022

 




06 janeiro 2021

isabel de sá / o riso

  
 
     O pensamento transforma a imprecisão de um verso. Pode torna-lo rígido, esplendoroso ou simplesmente fazer que a loucura o contamine. Se o riso alastra no poema e não para de crescer sabemos que a perturbação atingirá toda a página. O verso é uma sombra, um fio errante e solitário sem identidade. O poeta terá o mesmo destino, uma vez que corpo e alma são a textura de um único universo.
     No perfil do meu rosto a luz provoca e anula o grito. Ao lembrar Edvard Munch, a treva das cores, também eu sou a cinza do que escrevo.
 
29.11.89
 
 
isabel de sá
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991