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27 dezembro 2024

diego doncel / o filósofo das ruelas

 




 

1
 
Diz-me tu, dor – perguntava aquele filósofo das ruelas dos subúrbios
sentado atrás de uma folha de papelão – se, agora que vou tão pobre e sem refúgio
e com os olhos velhos como a cor do céu,
não é tempo já de que te esqueças de mim?
 
Diz-me tu, que és a única forma de consciência
Pela qual penso as coisas, se não é inútil habitar este frio,
se não é inútil fugir constantemente do que julgo que sou
ou que não sou, talvez aquilo que seja um estado
da minha própria morte ou uma forma diferente de viver?
 
No papelão escrevera a história da sua vida com inverosímeis
incorrecções ortográficas e deixava adivinhar
o permeável das fronteiras entre ser e deixar de ser.
As lojas estavam adormecidas, as gentes rodavam das franquias comerciais
de comida rápida para os bazares de diversão a cheirarem a terra húmida.
Uma franja de nuvens atravessava os intermitentes semáforos amarelos
a uma velocidade ilegal.
 
 
2
 
Noutros dias ganhava umas moedas a predicar à porta dos restaurantes
e dos centros de estética o esoterismo de uma vida feliz:
– Quando se segue o curso da vida – aconselhava –
alimentar-se é um acto espiritual:
são comprimidos de proteínas, comprimidos de carboidratos,
comprimidos de fibras naturais, comprimidos de ácido fólico
e vitaminas C e E,
nem sal nem gorduras nem açúcar,
só meditações, busca interior, serenidade.
Quando se segue o curso da vida
é decisivo o rejuvenescimento celular,
a absorção de oxigénio, o prodígio
dos extractos vegetais. A mente limpa,
escutar a música do coração.
E as pessoas, tão ávidas de novos visionários,
de novas mitologias, de modernos sonhadores
achavam sensata a mensagem das suas palavras.
 
Mas não era um filósofo existencialista
nem um profeta da vida sã.
Ninguém sabia quem era nem porque representava aquilo:
aquelas metamorfoses interiores, aquelas mudanças
de personalidade, aquela consciência fugidia
que é tudo e nada ao mesmo tempo,
o sonho de tudo que ninguém sonhava.
Depois sentava-se junto de jovens ociosos
a beber whisky em copos de papel,
e o álcool uivava nas suas veias
como uma ambulância numa rua tranquila.
Procurava talvez para lá
dos rituais humanos carentes de algum juízo
umas formas acabadas e perfeitas de existência.
E o seu eu não lhe servia.
Não sou, porventura, dizia-se a si próprio, o engano
que vou criando ao viver?
Porventura não fujo do meu nome, de qualquer
nome, pelos passeios deste subúrbio
e vagueio por estas ruelas,
que as drogas e a morte amam,
para não saber de mim?
 
 
3
 
Esquecia o mal-estar consigo mesmo
ao esquecer o pensamento, as dimensões doentes da sua alma
ao dar-se uma nova oportunidade de estar ali,
de continuar a celebração daquele estado em que as coisas
mais correntes não se convertiam em terríveis metáforas,
em que as coisas e os seres não eram já seus inimigos.
 
Tinha medo dele, do que se escondia
dentro dele e aterrava-o a morte.
 
E naquela noite o frio e a cobiça dos gelos
lembram-lhe toda a sua fragilidade.
Olhou os pombos nos ramos nus das acácias
como farrapos de velha roupa. Andou sem rumo
e refugiou-se em qualquer sítio,
talvez só ao calor da sua respiração.
Nas escuridões últimas da noite, quando a neve
tinha ocultado já a extensão dos passeios e o vento se ria
entre as elevadas estruturas de apartamentos com humorísticas gargalhadas,
encontrou uma única ideia que lhe deu paz, simples como ele,
algo que o reconciliava.
E por entre os lábios a si se disse, como um murmúrio:
eu sou apenas uma sombra
que pede humildemente esmola a outras sombras
e que ao estender a mão que treme
(a mesma mão com que às vezes
reconheço as formas do meu rosto,
com que dou de comer aos pardais das ruas
e lhes construo pequenas casas de madeira,
com que me guio, antes de adormecer, na leitura
dos aforismos de Marco Aurélio)
encontro toda a claridade do mundo.
 
 
 
diego doncel
em nenhum paraíso
trad. joaquim manuel magalhães
averno
2007
 



01 abril 2016

diego doncel / o outro revelado


                            (Depois da chuva)


Tempestade atrás de tempestade,
por altares de água,
sacrificado o sangue
de um verão feroz, aos céus
foge esta terra – à origem –
com  verdadeiro amor, delapidando-se.
Nada já se reconhece em si.
Ou só o nada.
Fundas jazem as coisas,
sem contornos,
ubíquas e outras no mais além
da inexistência que as funda.
E isto, diz-me, o espaço
da unidade, o fio consumido
pelo eterno?
Esta é a miragem?

Com a sua ferrugem, cumprido
Esse destino fatal
 – quebra sem limite, rasto? –
este corpo, já ido, perpétuo
está nestes lodos
onde a cega posse é o ral.
Ele próprio é lodo
cego sem encontrar sentido?
A luz da morte,
interior a ele, ilumina-o.
Nada é. Apenas existe
secreto sem ocultar-se.
Ao sentido as suas mudanças
acaso negam, atrás do véu
da sua própria unidade.
Mas ele é o sentido!
Morto, e vivo no mais alto
como deve estar toda a matéria,
a consciência procura uma entrada,
qualquer massa
onde beber o seu sangue,
em vão. Não é visível a sua fuga
e se em alguma dobra do tempo
se procura encontrá-lo
o seu instante é um rio que não flui,
que passa sem suceder-se, eternidade
sem fim.

A chuva uniu
os deuses da terra
com os deuses do céu,
e é a chuva quem funda
o ser sagrado.
Por que débil derrota chegar agora
a pronunciar-te, corpo, debaixo de que solidões,
ao fio de que luz ou despertar?

Nesta esfera infinita
que se revela a si mesma
o verdadeiro permanece
onde se existe apenas,
sem herança nem fim,
no absoluto do extinto.
Como lua na noite,
como fogo acontecido
o corpo na morte é luz
e por ele o ser se mostra.


                                                    El único umbral


diego doncel
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000