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15 março 2022

lawrence ferlinghetti / oh, tu que recolhes

 
 
Oh, tu que recolhes
          a fina cinza da poesia
                    cinza da chama demasiado branca da poesia
Pensa nos que arderam
          antes de ti
                              no fogo tão branco
Crisol de Keats e Campana
          Bruno e Safo
                    Rimbaud e Poe e Corso
E Shelley a arder na praia em Viareggio
 
E agora no meio da noite
          da conflagração geral
                    a luz branca
                              ainda a consumir-nos
                    pequenos palhaços
                         com as nossas velinhas
                              erguidas em direcção à chama!
 
 
 
lawrence ferlinghetti
a poesia como arte insurgente
tradução de inês dias
relógio d´água
2016




 

17 novembro 2020

lawrence ferlinghetti / as mulheres de sarolla





joaquín sorolla, el água

 
 
 
               As mulheres de Sarolla com os seus chapéus
                                                                           [de retrato
estendidas nas praias que ele pintava nas telas
             eram uma tentação para os impressionistas
                  espanhóis
 
               E seriam elas retratos fraudulentos
do mundo
             devido ao brilho da luz sobre elas
                                   criando ilusões
de amor?
 
               Não posso deixar de pensar
                                   que a sua «realidade»
era quase tão real como
       a recordação que levo do dia de hoje
 
   quando o derradeiro sol se pendurou nas colinas
    e ouvi o dia a cair de súbito
     como as gaivotas a caírem
      quase na praia
enquanto os últimos picnicadores estendidos na
                                                                             [areia
 
     se amavam no amarelo das pinceladas fortes
e resistiam resistindo-se
     separando-se um do outro
           e enlaçando-se
               e separando-se outra vez
até que um último espasmo quente e suspenso
       a que não era possível resistir
               os fez gemer
 
E as árvores da noite se ergueram
 
 

lawrence ferlinghetti
pictures og the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972




 

22 julho 2019

lawrence ferlinghetti / o olhar do poeta obscenamente olhando



O olhar do poeta obscenamente olhando
vê a superfície do mundo redondo
                com os seus telhados bêbados
                e oiseaux de madeira nas cordas da roupa
                e machos e fêmeas de gesso
                com pernas ardentes e seios de roseira
                em camas desmontáveis
e as suas árvores plenas de mistérios
e os seus parques domingueiros e as suas mudas
                                                          [estátuas
e a sua América
                com as cidades fantasmas e as Ilhas Ellis
                                                                  [vazias
e a sua paisagem surrealista de
                planícies sem espírito
                subúrbios de supermercados
                cemitérios aquecidos a vapor
                dias santos de cinerama
                e catedrais protestatárias
um mundo à prova de beijo formado de tampas de
                                         [retrete tampax e táxis
                cowboys de drugged-stores e virgens de
                                                             [las vegas
                peles-vermelhas expropriados e matronas
                                                           [cinemalucas
                senadores não-romanos e não-objectores
                                                      [de consciência
e todos os outros fatais e desguarnecidos
                                                              [fragmentos
do mundo do imigrante que se tornou real de mais
                e se extraviou
                                        no meio dos banhos de sol


lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972








23 fevereiro 2018

lawrence ferlinghetti / o castelo de kafka ergue-se sobre o mundo




               
                O Castelo de Kafka ergue-se sobre o
                                                           [mundo
como uma última bastilha
                                 do Mistério da Existência
Os seus acessos cegos nos confundem
                                                Caminhos íngremes
                partem dele e mergulham em nenhures
                                                     Estradas perdem-se no
                                                                                   [ar
como labirintos fios de central
                                              telefónica
através da qual todas as chamadas
                   se perdem no infinito
                Lá em cima
                        faz um tempo celestial
As almas dançam despidas
                                 em grupo
                   e como intrusos
                          na periferia de uma feira
                   espiamos o inatingível
                                     mistério imaginado
                               Contudo na parte de trás do
                                                             [castelo
                                   como na entrada dos artistas
                                           [de uma tenda de circo
há uma fenda funda e larga nas muralhas
                             pela qual até os elefantes
                                 podem entrar e dançar




lawrence ferlinghetti
a coney island of the mind
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972








04 julho 2017

lawrence ferlinghetti / a poesia como arte insurgente



(excerto)


Envio-te sinais por entre as chamas.

O Pólo Norte não está onde costumava estar.

O Destino Manifesto já não é manifesto.

A civilização está a autodestruir-se.

Némesis bate à porta.

Para que servem os poetas, numa época assim? Qual é a utilidade da poesia?

O estado do mundo pede à poesia que o salve. (Uma voz no deserto!)

Se queres ser um poeta, cria obras que consigam responder ao desafio de um tempo apocalíptico.

Tu és Whitman, tu és Poe, tu és Mark Twain, tu és Emily Dickinson e Edna St. Vincent Millay, tu és Neruda e Maiakovski e Pasolini, tu és americano ou não, tu podes conquistar os conquistadores com palavras.

Se queres ser um poeta, escreve jornais vivos. Sê um repórter no espaço sideral, e envia as tuas matérias para um supremo redactor-chefe que acredite na transparência total e tenha uma fraca tolerância a conversa fiada.

Se queres ser um poeta, experimenta todo o tipo de poéticas, gramáticas eróticas imperfeitas, religiões extáticas, efusões pagãs glossolálicas, discursos públicos bombásticos, rabiscos automáticos, percepções surrealistas, fluxos de consciência, sons encontrados, discursos e divagações – e cria a tua própria voz límbica, a tua própria voz secreta, a voz que te diz.

(…)




lawrence ferlinghetti
a poesia como arte insurgente
tradução de inês dias
relógio d´água
2016






15 março 2016

lawrence ferlinghetti / autobiografia



A vida que levo é muto sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a admirar os campeões
do Grupo Dante de Bilhar
e os viciados dos matraquilhos.
A vida que levo é muito sossegada
na zona leste da Broadway.
Sou americano.
Sempre fui um rapaz tipicamente americano.
Lia o Magazine dos Rapazes Americanos
e tornei-me escuteiro
nos subúrbios.
Sentia-me o Tom Sawyer
ao pescar caranguejos do rio na Bronx
mas a pensar no Mississípi.
Tive uma luva de baseball
e uma bicicleta American Flyer.
Distribuí o Woman´s Home Companion
às cinco da tarde
e o Herald Tribune
às cinco da manhã.
Ainda julgo estar a ouvir o barulho do jornal ao cair
nos terraços para onde eu o atirava.
Tive uma infância infeliz.
Vi Lindberg aterrar.
Olhei com saudade para o meu torrão natal
mas não vi nenhum anjo, ao contrário do Thomas Wolfe.
Fui apanhado a roubar lápis
no supermercado
no mesmo mês em que fui promovido a Escuteiro-Chefe.
Derrubei árvores para o Departamento da Agricultura
e sentei-me nelas.
Desembarquei na Normandia
num barco a remos que se voltou.
Vi os exércitos tão cultos
na praia de Dover.
Vi pilotos egípcios em nuvens púrpura
lojistas a correrem os taipais
ao meio-dia
salada de batatas e flores
em piqueniques anarquistas.
Estou a ler «Lorna Doone»
e uma biografia do João Máximo
que era o terror dos capitães de indústria
e tinha sempre uma bomba na gaveta da secretária.
Vi os homens da limpeza desfilarem
no dia comemorativo de Colombo
atrás das fanfarras ruidosas
e malcheirosas.
Há que tempos que não vou visitar os Claustros
ou as Tulherias
mas continuo a fazer tenção
de lá ir.
Vi os homens da limpeza desfilarem
debaixo da neve que caía.
Comi cachorros quentes nas feiras.
Ouvi o Discurso de Gettysburg
e os discursos de Ginsberg.
Gosto disto aqui
e não voltarei
para donde vim.
Também eu, como o Ginsberg,
viajei em vagões-jota vagões-jota vagões-jota.
Também eu viajei no meio de desconhecidos.
Estive na Ásia.
Estive com Noé na Arca.
Quando Roma foi construída
estava eu na Índia.
Estive na Manjedoura
com o Burro.
Da Montanha Branca
ao sul de São Francisco
vi o Distribuidor Eterno
e no Luna Parque vi a Mulher que Ri
na Barraca das Gargalhadas
sob uma bátega de água
mas sempre a rir.
Tenho ouvido à noite os ruídos
das grandes pândegas.
Tenho vagueado tão solitário
como as solitárias multidões.
A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias à porta do café do Mike
a ver o mundo passar por mim
em tão variados sapatos.
Empreendi uma vez
uma viagem a pé à volta do mundo
mas quando dei  por mim estava em Brooklyn.
Não consegui fugir à Ponte de Brooklyn.
Em silêncio maquinei
exílio e engenho.
Voei demasiado perto do sol
e as minhas asas de cera derreteram-se.
Ando à procura do meu Velho
que nunca conheci.
Ando à procura do Chefe Perdido
com quem voei.
Os jovens deviam ser exploradores.
O lar é o lugar donde se parte.
Mas a minha Mãe nunca me preveniu
de que havia cenas como esta.
Cansado do útero materno
descanso.
Tenho viajado.
Visitei a cidade dos Fantasmas.
Conheço a maçada das massas.
Ouvi chorar o Kid Ory.
Ouvi um trombone a pregar.
Ouvi Debussy
filtrado pelo meu lençol.
Dormi numa centena de ilhas
onde os livros eram árvores.
Ouvi pássaros
cujo chilreio parecia o dobrar dos sinos.
Usei calças de flanela
e passeei-me pela praia do inferno.
Vivi numa centena de cidades
onde as árvores eram livros.
Que metropolitanos que táxis que cafés!
Que mulheres de seios cegos
e membros perdidos no meio de arranha-céus!
Nas encruzilhadas
vi estátuas dos heróis.
Danton em lágrimas na entrada de um metropolitano
Colombo em Barcelona
a apontar nas Ramblas para o Ocidente
na direcção do American Express
Lincoln no seu trono de pedra
E um enorme Rosto de Pedra
no Dacota do Norte.
Bem sei que o Colombo
não inventou a América.
Ouvi uma centena de Ezra Pounds domesticados.
Deviam ser todos libertados.
Já passou imenso tempo desde que fui guardador de rebanhos.
A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a ler os anúncios classificados.
Li de ponta a ponta
as Selecções do Reader´s Digest
e notei a perfeita identificação
entre os Estados Unidos e a Terra Prometida
onde todas as moedas têm a inscrição
«Em Deus Confiamos»
mas as notas de dólar não a têm
porque elas próprias já são Deus.
Todos os dias leio os anúncios da secção «Precisa-se»
à procura de uma pedra uma folha
uma porta jamais encontrada.
Nas Páginas Amarelas
ouço a América a cantar.
Ninguém diria
que a alma passa crises.
Todos os dias leio os anúncios
e noto a ausência da humanidade
nessa triste pletora de caracteres de imprensa.
Vejo que esvaziaram o Lago de Walden
para no sue lugar construírem um parque de diversões.
Vejo que estão a obrigar o Melville
a comer a sua própria baleia.
Vejo que vem aí uma nova guerra
mas quando ela vier não estarei eu cá para tomar parte.
Li os desígnios do destino
escritos nas paredes do telheiro.
Fui eu quem ajudou o Kilroy a escrevê-los.
Marchei pela Quinta Avenida acima
tocando clarim num pelotão cerrado
mas apressei-me a voltar para o Casbah
à procura do meu cão.
Noto que há uma certa semelhança
entre os cães e eu.
Os cães são os verdadeiros observadores
dos altos e baixos
da terra de Molloy.
Calcorreei becos e vielas
Estreitas de mais para Chryslers.
Vi uma centena de carroças do leite sem cavalos
num lote de terreno devoluto em Astoria.
Tenho ouvido o solo do ferro-velho.
Tenho percorrido as auto-estradas
e acreditado nas promessas dos cartazes
Atravessado as planícies de Jersey
e visto as Cidades Planas
E sulcado as terras ermas de Westchester
cruzando-me com bandos errantes de nativos
em station wagons.
Tenho-os visto.
Eu sou o Homem.
Estive lá.
Sofri
um tanto ou quanto.
Sou Americano.
Tenho passaporte.
Mas não sofri em público.
E sou novo de mais para morrer.
Sou um homem que se fez a si-próprio.
E tenho projectos para o futuro.
Estou na bicha
para um bom emprego.
Talvez me mude
para Detroit.
Ando a vender gravatas, mas isso
não passa de um trabalho temporário.
Sou um tipo às direitas.
Sou um livro aberto
para o meu patrão.
Sou um mistério impenetrável
para os meus amigos mais íntimos.
A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a contemplar o umbigo.
Sou uma parte
da longa loucura deste corpo.
Tenho vagueado em vários bosques nocturnos.
Tenho-me amparado em portais embriagados.
Tenho escrito contos despenteados
sem qualquer pontuação.
Eu sou o Homem.
Sofri
um tanto ou quanto.
Sentei-me em cadeiras de cansaço.
Sou uma lágrima do sol.
Sou uma colina
onde os poetas correm.
Inventei o alfabeto
depois de observar o voo das gruas
que fazem letras com as pernas.
Sou um lago numa planície.
Sou uma palavra
numa árvore.
Sou uma colina de poesia.
Sou uma operação de «comandos»
na zona do inarticulado
como o Elliot.
Sonhei
que os dentes todos me caíam
mas a minha língua sobrevivia
para contar como foi.
Porque sou um silêncio
poético.
Sou um banco de canções.
Sou uma pianola mecânica
num casino abandonado
numa esplanada à beira-mar
num nevoeiro espesso
mas sempre a tocar.
Noto que há uma certa semelhança
entre a Mulher que Ri
e eu.
Tenho ouvido o som do Verão
na chuva.
Tenho visto raparigas nas faixas de paragem
vítimas de complicadas sensações.
Percebo as suas hesitações.
Sou um colhedor de frutos.
Tenho visto como os beijos
têm consequências de euforia.
Tenho-me arriscado
a ficar encantado.
Vi a Virgem
numa macieira em Chartres
e Santa Joana a arder
na Bela Union.
Tenho visto girafas em selvas e ginásios
com os pescoços como o amor
entrelaçados nas circunstâncias de ferro forjado
deste mundo.
Tenho visto a Venus Afrodite
sem braços no corredor cheio
de correntes de ar.
Ouvi uma sereia a cantar
no número um da Quinta Avenida.
Vi a Deusa Branca a dançar
na Rue des Beaux Arts
no dia Catorze de Julho
e a Bela Dama sem Mercê
a tirar macacos do nariz no Chumley´s.
Ela não falava inglês.
Tinha cabelo amarelo
e voz rouca
e não se ouvia o canto de nenhuma ave.
A vida que levo é muito sossegada.
Passo os dias no café do Mike
a observar os jogadores de bilhar de bolsas
integrado naquele cenário
devorando macarroni
e li algures
o Significado da Existência
mas esqueci
exactamente onde.
Mas sou o Homem
E estarei lá.
E talvez ainda faça falar
os lábios da gente adormecida.
E talvez transforme em relva
os meus cadernos de apontamentos.
E talvez ainda escreva o meu
anónimo epitáfio
pedindo aos cavaleiros
que se não detenham.


lawrence ferlinghetti
oral messages
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972