jaz morta e arrefece. Ainda é noite
e os caminhos já não se bifurcam
enquanto a lua vai sorrindo. A esperança,
sabemos que é a última a morrer,
mas a cidade é toda um déjá vu,
um abismo de imagens repetidas
por espelhos iludindo outros espelhos
acompanhando um rio que nunca teve
quem o cantasse – diz-nos a Agustina
na frase inicial do seu romance
sobre a filha infeliz do coronel Owen,
um desses ingleses que este Porto
soube adoptar num século romântico
de jardins desbotados e emoções
por vezes muito óbvias, embebidas
na treva e no silêncio. Alguns passos
feitos de sombra e água e logo tudo
recupera o perfil do esquecimento,
a consistência mole das coisas surdas
que adormecem as dores e os prazeres
em casulos de vidro litoral
a meio de um percurso que retoma
nobrezas, burguesias, novos-ricos,
pessoas sempre sólidas, compactas,
povoando os anódinos destinos
com sinais quase sempre obrigatórios
da serena fortuna: Maseratis,
B.M.W.’s série sete ou mesmo
um Jaguar tão azul, tão luminoso
como o da minha infância. Tantas vezes
duvidei do passado e do futuro
como se o tempo não me conhecesse
e a verdade brilhasse, distraída,
para lá do horizonte. Cada voz
é o sangue do nada que circula
e vai coalhando agora no tranquilo
sono dos automóveis pelas ruas
entre uma escória de recordações
que mal sei distinguir e no entanto
me deixam hoje absorto na esplanada,
quase submerso em estranhas avarias
do sentimento ou da imaginação
– só literatura, mera literatura.
Fechei de novo o círculo: esta vida
começa a ser igual às outras vidas
que alguém viveu em mim antes de mim
nesta e noutras cidades. A memória
é um poço vazio, quase um deserto
onde vislumbro vagas caravanas
à procura do rumo que não há
nos corpos ou nas almas segregando
outros corpos e almas. Entro e saio
dos cem ou mil lugares onde vicejam
a flora e a fauna predadora
das quatro da manhã. Não me submeto
às inúteis mensagens da alegria
em cada rosto e sinto que encontrei
a velocidade de cruzeiro: é isto,
escrever talvez ao ritmo de apelos
a que este mundo chama ainda música
e serão simplesmente contracções
de vísceras aflitas, vãos esgares
imitando o sorriso de ninguém
no instante em que nasce ou em que morre
o estilhaçado som de um coração
quando se parte sem nenhum remédio,
sem promessas que o salvem da catástrofe,
até ficar sozinho para sempre,
à mercê de outro sonho ainda mais forte,
mais rápido que o álcool, transformando
a vida em morte, a morte em vida, agora
exactamente iguais – perfeita ekphrasis
continuem felizes a queimar
os anónimos nomes que se elevam
da madrugada aqui na Foz do Douro
onde a névoa da água é mais que névoa
no mar feito de fumo onde os meus olhos
sobrevivem já cegos, noutra luz.
dez elegias para o fim do milénio
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000
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