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18 janeiro 2024

margaret atwood / dentro

 
 
De fora vemos uma contracção
mas de dentro, como sentido
pelo coração e respiração e pele profunda, quão diferente,
quão vasto   quão calmo   quão parte de tudo
quão escuro estrelado. O último suspiro. Divino
possivelmente. Talvez alívio. Os amantes presos
e selados dentro de uma caverna,
vozes levantadas num último dueto
oscilante, até a pequena vela
se apagar. Bom ainda assim
segurei a tua mão e talvez
tenhas segurado a minha
enquanto a pedra ou universo se fechava em
redor de ti.
Mas não em redor de mim. Eu ainda estou fora.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021




11 agosto 2023

margaret atwood / sombra

 
 
Alguém deseja o teu corpo.
 
Qual é o negócio?
Implorar, pedir emprestado, comprar ou roubar?
Sarjeta ou pedestal?
É sempre assi com os corpos
que alguém quer.
 
O que vale isso para ti?
Uma rosa, um diamante,
um fantástico milhão, uma piada, uma bebida?
A história de que este gosta de ti?
 
Poderias concede-lo, este corpo,
como criatura generosa que és,
ou desligar e tê-lo arrebatado
e nunca saberias.
 
Despede-te dele, do corpo
que já foi teu.
Está a correr bem,
está enrolado em peles, está a dançar
ou a esvair-se além num prado.
 
Também já não precisavas dele,
atraía demasiada atenção.
Ficas melhor só com uma sombra.
 
Alguém deseja a tua sombra.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021



31 março 2023

margaret atwood / sal

 



 

As coisas eram boas nessa altura?
Sim. Eram boas.
Sabias que eram boas?
Nesse tempo? No teu tempo?
 
Não, porque estava preocupada
ou talvez faminta
ou a dormir, metade do tempo.
de vez em quando havia uma pêra ou uma ameixa
ou um copo com alguma coisa dentro,
ou uma cortina branca, ondulando,
ou ainda uma mão.
Também a luz suave da lâmpada
naquela tenda antiga,
desabando em beleza, plenitude,
corpos entrelaçando-se e estimando-se,
irrompendo, e desaparecendo.
 
Miragens, decides tu:
tudo isso nunca foi.
Embora por cima do teu ombro lá esteja,
o teu tempo definido como um piquenique
ao sol, brilhando ainda,
apesar de ser de noite.
 
Não olhes para trás, dizem eles:
tornar-te-ás sal.
Mas porque não? Porque não olhar?
Não é tão brilhante?
Não é tão bonito, lá atrás?
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021





24 maio 2022

margaret atwood / traição

 
 
Quando tropeças no teu amante e na tua amiga
nus por dentro ou sobre a tua cama
há coisas que podem ser ditas.
 
Adeus não é uma delas.
Nunca irás fechar essa porta aberta desajeitadamente,
eles ficarão presos naquele quarto para sempre.
 
Mas tinham mesmo de estar assim tão nus?
Tão sem graça?
Atolando-se às voltas como se num charco primaveril?
 
As pernas muito finas, a cintura muito grossa,
gelatina aqui e ali,
os tufos de cabelo…
 
Sim, foi uma traição,
mas não de ti.
Apenas de certa ideia que tinhas
 
deles, alumiada e mística,
com flocos de neve a cair
e um sol-pôr malva em Dezembro –
 
não esta imagem acanhada,
esta carne encurvada
presa no brilho fixo do teu olhar.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021




23 agosto 2021

margaret atwood / poemas atrasados

 
 
 
Estes são os poemas atrasados.
A maior parte dos poemas está atrasada
é claro demasiado atrasada,
como a carta enviada por um marinheiro
que chega depois de ele se afogar.
 
Demasiado atrasadas para serem úteis, tais cartas,
e com os poemas atrasados é parecido.
Chegam como se pela água.
 
O que quer que tenha acontecido:
a batalha, o dia ensolarado, o luar
deslizando para a luxúria, o beijo de despedida. O poema
dá à praia como destroços.
 
Ou atrasados, como se atrasados para jantar:
cada palavra fria ou ingerida.
Canalha, apuro, e vencido,
ou demorar, esperar, um pouco,
esquecido, lamentado, abandonado.
Amor e alegria, até: canções trituradas.
Feitiços enferrujados. Refrães gastos.
 
É tarde, é muito tarde;
demasiado tarde para dançar.
Ainda assim, canta o que puderes.
Acende a luz: canta lá,
canta: Vá.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021