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20 fevereiro 2023

juan vicente piqueras / história universal

 



 
Um homem nasce chora cresce ri
sofre e faz sofrer caminha canta
tem sede fome frio medo pressa
perde-se transborda arde sorri.
 
Um homem sozinho no meio da noite
assobia para amansar os monstros que o habitam.
 
Abraça empurra mata beija morre
cansa-se de si mesmo apaixona-se
dá-se à vida sabe que se acaba
que escorre o que é por entre os dedos.
 
Um homem olha o céu as nuvens e diz-se
em silêncio que breve
que bela e fugidia é, foi, a vida.
 
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019




06 junho 2021

juan vicente piqueras / papoilas


 
 
                                           A Izer Sarajlic
 
 
 
Sobre o antigo campo de batalha
onde morreram milhares de rapazes
volta a crescer o trigo, salpicado
aqui e ali por ardentes papoilas.
 
E dois apaixonados, que terão
mais ou menos a idade dos soldados
que então aqui morreram,
fazem amor entre as searas.
 
Derrubam o trigo. Esmagam as papoilas.
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019





08 janeiro 2020

juan vicente piqueras / proposta de epitáfio



Em criança fui imortal. Em adolescente
rebelei-me contra o que agora sou.
Em jovem fui selvagem. Fiz sofrer
e sofri muito mais do que quis.
Pouco a pouco a morte (era semente
e parecia alheia) foi crescendo
dentro de mim, feliz, recuperando
o que era seu e eu soube de que era feita
a vida já bem tarde. Na velhice
beijava a água e abraçava o ar
como o doente abraça a esperança
ou o náufrago a espera. Nunca o mundo
foi tão belo como antes de partir.
Agora já não existe. Agora sonho
que o que já não sou volta a nascer.



juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019







03 julho 2019

juan vicente piqueras / instruções para sair do deserto



Para sair deste íntimo deserto
é preciso saber que não tem saída.

Esperar, caminhar, desesperar,
cultivar a paciência até perdê-la
quando todo tu sejas já pura paciência.

É preciso sentir que o deserto és tu mesmo,
recordar com irónica ternura
aqueles dias só agora felizes
em que tivemos fé nas miragens.

Já não há mais coração do que aquele que ardeu.

Não há maneira nem água nem amanhã
nem oriente nem ocidente. Não há estrelas
que te digam onde, que te indiquem
messias ou saídas que não existem.

Até que um dia encontres
diante de ti as tuas pegadas de outros anos
e compreendas que chegaste ao teu passado,
que já estás onde estavas,
que morrerás de sede.
                                         Olha na areia
as sombras dos abutres que julgavas gaivotas.




juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019






23 maio 2019

juan vicente piqueras / que faço eu aqui



Eu venho de outro mundo e não entendo
como é que aqui cheguei e que pretendeis
de mim se não é amor nada espereis.

Guardo no meu coração velhas palavras
que já ninguém pronuncia touros tristes
mães que ainda não nasceram.

Eu não sou deste mundo nem de outro.
Minha voz é uma lágrima feliz.
Amanhã morrerei agradecendo
por não ter entendido este milagre.



juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019