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21 novembro 2023

konstandinos kavafis / o espelho na entrada

 




 

A casa rica tinha no vestíbulo
um espelho enorme, imenso, muito antigo,
comprado há pelo menos oitenta anos.
 
Um perfeito rapaz, aprendiz de alfaiate –
e aos domingos atleta amador –
chegou com um embrulho. Entregou-o
a alguém da casa que o levou p’ra dentro
por causa do recibo. O mandarete
ficou sòzinho à espera ali na entrada.
E foi até ao espelho e começou a ver-se
e a ajeitar a gravata. Uns minutos depois,
trouxeram-lhe o recibo, e foi-se embora.
 
Porém o espelho antigo que já vira,
nos tantos anos em que fora espelho,
milhares e milhares de imagens várias,
ficou contente enfim, cheio de orgulho,
pois recebera em si, dentro de si,
inteira, tal beleza, por instantes.
 
(1930)
 
 
 
constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003


31 maio 2017

konstandinos kavafis / muros




Sem circunspecção, sem mágoa, sem pejo
grandes e altos em redor de mim construíram muros.

E fico e desespero agora no que vejo.
Não penso noutra coisa: na minha mente esta sina rasga furos;

porque tantas coisas havia a fazer lá fora por ti.
Quando construíram os muros como é que não reparei, ah.

Mas nunca o estrondo de pedreiros ou som ouvi.
Imperceptivelmente cerraram-me do mundo que está lá.




konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994





19 dezembro 2016

konstandinos kavafis / da loja




Embrulhou-as com cuidado, ordenadamente
na seda verde excelente.

Lírios de pérolas, rosas de rubis,
violetas de ametista. Tais como ele as quis,

as apreciou, as viu belas; não como na natureza há
as viu e as estudou. Dentro do cofre as deixará

amostra do seu trabalho eficaz e sem temor.
Se na loja entrar um qualquer comprador

tira outras dos estojos e vende – jóias singulares –
pulseiras, anéis, cordões e colares.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994



19 maio 2015

konstandinos kavafis / antes de o tempo os mudar



Entristeceram grandemente     no momento da sua separação.
Eles não a queriam;     foram as circunstâncias.
Necessidades vitais     fizeram um deles
ir embora para longe ─      Nova Iorque ou Canadá.
O seu amor não era     por certo como dantes;
tinha diminuído     a atracção gradualmente,
tinha diminuído     muito a sua atracção.
Mas separar-se,     não o queriam.
Foram as circunstâncias. ─      Ou porventura artista
foi a Sorte     separando-os agora
antes de apagar-se o sentimento deles,     antes de o Tempo os mudar;
o um para o outro     ficará para sempre como se fosse
esse belo rapaz     dos vinte e quatro anos.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994



24 janeiro 2015

konstandinos kavafis / as janelas



Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas ─ Uma janela
quando abrir será uma consolação. ─
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994




30 julho 2014

konstandinos kavafis / che fece….il gran rifiuto



A algumas pessoas um dia cai
em que o grande Sim ou o grande Não sobrevém
dizer. Logo surge ao de cima a que tem
pronto dentro de si o Sim e ao dizê-lo vai

além da sua honra e do que está convencida.
A que negou não se arrepende. De novo interrogada
Voltaria a dizer não. Mas tem-na derrotada
Aquele não – o correcto – toda a sua vida.



konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994



14 abril 2014

konstandinos kavafis / desideri


1
DESEJOS
Como corpos belos dos que morrem sem ter envelhecido
— e são guardados, em lágrimas, num mausoléu magnífico,
com rosas na fronte e com jasmins aos pés —
assim os desejos são, desejos que esfriaram
sem serem consumados, sem que um só fruísse
uma noite de prazer, ou uma aurora que a lua inda ilumina.



constantino cavafy
90 e mais poemas
trad Jorge de Sena
edições asa
2003



28 março 2014

konstandinos kavafis / ao pé da casa



Ontem, divagando por um bairro
mais distante, passei pela casa
onde eu às vezes ia, ao tempo de ser jovem.
De meu corpo o Amor se apoderou ali
com sua força incrível. Ontem,
quando passava pela velha rua,
lojas, calçada, pedras,
paredes e varandas e janelas,
tudo se transformou por magia do amor.
Nada restou que fosse pobre e vil.

E enquanto eu me ficava olhando a porta,
parado, a demorar-me ao pé da casa,
de todo o ser me fluíam, restitutos,
os sensuais prazeres que tinha em mim guardados.

[1918 ]

  

constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003




29 abril 2013

constantino cavafy / a origem


  
Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.

                                                          [1921]



constantino cavafy
90 e mais poemas
trad jorge de sena
edições asa
2003



07 dezembro 2011

constantino cavafy / à espera dos bárbaros





O que esperamos nós em multidão no Forum?

       Os Bárbaros, que chegam hoje.

Dentro do Senado, porque tanta inacção?
Se não estão legislando, que fazem lá dentro os senadores?

        É que os Bárbaros chegam hoje.
        Que leis haveriam de fazer agora os senadores?
        Os Bárbaros, quando vierem, ditarão as leis.

Porque é que o Imperador se levantou de manhã cedo?
E às portas da cidade está sentado,
no seu trono, com toda a pompa, de coroa na cabeça?

        Porque os Bárbaros chegam hoje.
        E o Imperador está à espera do seu Chefe
        para recebê-lo. E até já preparou
        um discurso de boas-vindas, em que pôs,
        dirigidos a ele, toda a casta de títulos.

E porque saíram os dois Cônsules, e os Pretores,
hoje, de toga vermelha, as suas togas bordadas?
E porque levavam braceletes, e tantas ametistas,
e os dedos cheios de anéis de esmeraldas magníficas?
E porque levavam hoje os preciosos bastões,
com pegas de prata e as pontas de ouro em filigrana?

        Porque os Bárbaros chegam hoje,
        e coisas dessas maravilham os Bárbaros.

E porque não vieram hoje aqui, como é costume, os oradores
para discursar, para dizer o que eles sabem dizer?

        Porque os Bárbaros é hoje que aparecem,
        e aborrecem-se com eloquências e retóricas.

Porque, subitamente, começa um mal-estar,
e esta confusão? Como os rostos se tornaram sérios!
E porque se esvaziam tão depressa as ruas e as praças,
e todos voltam para casa tão apreensivos?

        Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
        E umas pessoas que chegaram da fronteira
        dizem que não há lá sinal de Bárbaros.

E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução.

                                                         
 [Antes de 1911]






constantino cavafy
90 e mais poemas
trad. jorge de sena
edições asa
2003