I
O pássaro, de todos os nossos consanguíneos o mais
inflamado pela vida, leva aos confins do dia um singular destino. Migrador e
assediado pela inflação solar, viaja de noite, pois os dias são demasiado
curtos para a sua actividade. Em tempos de lua parda, cor do visco das Gálias,
povoa com o seu espectro a profecia nocturna. E o seu pio na noite é o pio do
próprio alvorecer: grito de guerra santa e golpes de faca.
No fiel das asas, a imensa libração de uma dupla
estação; e sob a curva do seu voo, a própria curvatura da terra… Sua lei é a
alternância, ambiguidade o seu reino. No espaço e no tempo que ele incuba com
um único voo, qualquer estivação seria uma heresia. E é também a vergonha do
pintor e do poeta, aglutinadores de estações nos mais elevados pontos de
intersecção.
Ascetismo do voo!... O pássaro, de todos os nossos
comensais o mais ávido de ser, é aquele que, para nutrir a sua paixão, traz
oculta dentro de si a mais alta febre do sangue. A sua graça é a combustão. Nenhum
simbolismo aqui: simples facto biológico. E tão leve para nós é a matéria
pássaro, que a contra-fogo do dia nos parece chegar a incandescer. Um homem no
mar, pressentido o meio-dia, levanta a cabeça para este escândalo: uma gaivota
branca aberta no céu, como uma mão de mulher contra a chama de uma candeia,
alça no dia de rósea transparência uma brancura de hóstia…
Asa arqueada do sonho, esta noite marcamos encontro
noutras margens!
saint-john perse
pássaros (1963)
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016