19 março 2024

saint-john perse / pássaros

 
 
I
 
O pássaro, de todos os nossos consanguíneos o mais inflamado pela vida, leva aos confins do dia um singular destino. Migrador e assediado pela inflação solar, viaja de noite, pois os dias são demasiado curtos para a sua actividade. Em tempos de lua parda, cor do visco das Gálias, povoa com o seu espectro a profecia nocturna. E o seu pio na noite é o pio do próprio alvorecer: grito de guerra santa e golpes de faca.
 
No fiel das asas, a imensa libração de uma dupla estação; e sob a curva do seu voo, a própria curvatura da terra… Sua lei é a alternância, ambiguidade o seu reino. No espaço e no tempo que ele incuba com um único voo, qualquer estivação seria uma heresia. E é também a vergonha do pintor e do poeta, aglutinadores de estações nos mais elevados pontos de intersecção.
 
Ascetismo do voo!... O pássaro, de todos os nossos comensais o mais ávido de ser, é aquele que, para nutrir a sua paixão, traz oculta dentro de si a mais alta febre do sangue. A sua graça é a combustão. Nenhum simbolismo aqui: simples facto biológico. E tão leve para nós é a matéria pássaro, que a contra-fogo do dia nos parece chegar a incandescer. Um homem no mar, pressentido o meio-dia, levanta a cabeça para este escândalo: uma gaivota branca aberta no céu, como uma mão de mulher contra a chama de uma candeia, alça no dia de rósea transparência uma brancura de hóstia…
 
Asa arqueada do sonho, esta noite marcamos encontro noutras margens!
 
 
 
saint-john perse
pássaros (1963)
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016




Sem comentários: