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18 maio 2024

rui lage / terminal

 
 
Chegaram ao terminal número Sete
Malas de cabalistas (dói-me a mão!),
Repescam-se com a vida que remete
Um regresso partido no coração.
 
Cabelos intocados, gabardines,
Crinas de cigarros, saias de solidão
E hei-de jazer sem que me ensines
Porque tudo corre da tua emoção.
 
Imóveis, sustentam-se de vontades
Aviões sobre nuvens encarceradas
Atrás do olhar ambos os lados das grades.
 
Humilde por me saber uma vela
Entre portas, entre correntes de ar,
Só para ti me acendo à janela.
 
                                           Bruxelas
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002





 

06 fevereiro 2024

rui lage / o regresso dos lobos

 
 
Esqueceu a vida antes do campo;
Acolhe o estilhaço da geada
Na garganta em feitio de banco
Ou numa chávena requentada.
 
No teu colo deixei camisolas
E faúlhas de vários tamanhos;
Queima-se a pedra e ardem as solas
Dos teus dóceis chinelos castanhos.
 
O derradeiro lobo regressa
O xaile negro, o sono que tarda
A metade da cama intocada.
 
Debaixo do escano amuada
Estava a tua sombra escondida
Que se esgueirou da sombra da vida.
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002




 

13 setembro 2023

rui lage / alcançado

  

Não vem do sol a sombra nem vem do chão,
Nem do choupo mas das horas que aguardam
Um luto antecipado no coração
Que tantas primaveras retardam.
 
Palavras desanimam na esplanada,
Sucumbem à chama lenta do arado:
Estacam, como se fosse cair geada
Na vida de um charco superlotado
 
Os matraquilhos, a estrela menina
Comprimidos nas folhas dos herbários
- O licor surpreendido nos armários!
 
Crianças que eram açúcar nos figos
- Poeira enfim no largo da igreja –
Então percorrendo montes floridos.
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002





27 maio 2023

rui lage / brasserie

 



 

Remexia cerveja, recordava vinho
E lâminas de claridade retinta
Feriam-me nesta inércia de linho
Quando ela entrou, drapeando a cinta
 
A flamenga… tudo o mais era moldura:
Um baixo-relevo de óleo estático
E a luz da lamparina cozedura
De sombra, de ar, de lume dramático.
 
Eu só aplaudia o seu desfile rosado
Como um papel-de-parede ruidoso
(E nos seus cabelos sentia-me usado)
 
Como se lágrimas, palavras jorrando
Na suspensão de ela ser me sentasse
E já desde o fim do olhar me olhasse.
 
                                     
                                               Bruxelas
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002
 



30 julho 2022

rui lage / a demora do carteiro

 
 
Pela aurora a miríade canora
Amotina ausência geométrica,
Alfaiates sobre água inodora
Decifram-me saudade aritmética.
 
Partiu-se-me a manhã num envelope,
Extravio porventura da vigília
Do sonho anterior, parente da morte,
Afastada mas da mesma família.
 
Ir à varanda é estar só chegada
Uma carta endereçada ao peito
E quem sabe se neste perdoada.
 
Demorada a caneta na madrugada,
Com dedos ágeis e desassossegados,
Ontem, descoberto, deus jogou os dados.
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002
 


25 janeiro 2018

rui lage / frutaria



Estarão todos os ares impregnados
Deste sol adocicando a manhã,
Que traz a um tempo do mundo guardados
O pecado e a fruta brilhante e sã?

Estarão filhos por nascer escutando
O tinir de copos pelo noivo amigo?
E esta amizade porque vem entrando
Já fria no café, cada um consigo?

Nada se perder é nada repetir.
Assim tudo se transforma no pão quente:
Mágoas em sossego na grávida doente.

Nada repetir para que tudo volte:
Para quê protelar o amor com obras?
Sempre da morte nascerão coisas novas.


rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002






17 setembro 2016

rui lage / 31 de janeiro



A rua é comoção antecipada,
Noutro lugar é a mesma ternura:
Imolar o gesto à mulher amada
Ser-se a madeixa dócil e escura.

Quem as navega e acende? Quem as colhe
Já tão frias nas escadas de metal?
Quem dará graças depois ao que nos tolhe
Após as luzes e os enfeites de Natal?

De qualquer fogueira subir em centelhas,
Em qualquer lume que esfria ser acha
E cheirar teu rosto a maçãs vermelhas.

Peneirar do que declinas o não dito
Ou escrevê-lo até (mas num céu nítido
Que nuvens eu não sigo assim aflito)…


rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002






06 julho 2010

rui lage / les baigneuses




...........................para o Agostinho Santos




nas margens do rio depois de jantar
um vulto equipado de isqueiro
e tabaco de enrolar
passa a pente fino cabelos
que as casas deitam nas águas
com fachadas anoitecidas
e postigos iluminados,
quais do banho saídas
ou das telas de Degas
níveas mulheres de robe
e turbante a fumegar.




rui lage
corvo
quasi
2008