11 outubro 2019

manuel de castro / poema




A noite líquida     oclusa     vegetal
é um corpo longilíneo e desmembrado
flui como um rio de si mesmo alheio
flui e envolve pressagiando cárceres
a noite tem hoje uma altitude especial
com aves negrejando lentamente
neste desintegrar-se da memória

e eu sou uma alucinação rítmica
com um tempo corpóreo a devorar
um mar excessivamente quieto na cabeça
excessivamente muscular e lúcido

a noite distribui pedaços de lua
aos farrapos     na inconsciência dos prédios
sobre a cidade     a cidade     a cidade louca
que desvairou nas minhas mãos     nos dedos
possuída de um candelabro antigo a partir-se
um lampadário cristalino e rutilante
a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora

viajo nitidamente pelo passado
na organização de um jogo de perigo:

o meu amor é a aquisição de uma técnica
um processo de transformação dos corpos
a prospecção dramática dos ritos
uma queda livre e vertical
um olhar imóvel sobre o mar
a oferta do tempo     sem comércio nem ódio
fibra a fibra
do tempo crivado de buracos     baleado
assassinado     corrupto     perdido

o meu amor é correcta magia dos sons
a ultrapassagem da noite
fulminante e arrebatada     num círculo de fogo
coberta de engenhos de destruição
correndo extensamente sem peso

o meu amor é uma trovoada nas margens da noite
uma proposta veiculada a sangue
patrocinada pelos mortos deambulantes
e é ainda a carcaça húmida dos barcos
destroçados n’areia

a noite é um coral magnífico na noite



manuel de castro
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992






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