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30 agosto 2023

manuel de castro / o asteróide em fuga

 
 
Penetra a filigrana dos nervos
o olhar desarmado dos objectos
ameaçador, gelado de penumbra
com um ruído convulso e persistente
de facas, de vidros, de engrenagens.
 
Impõe-se uma ultrapassagem aérea de conquista
        a dobragem do medo
para o assalto da estratosfera líquida,
aonde o movimento é amplo e de vertigem.
 
Cada centímetro cúbico da noite
se adquire no precipício do jogo
com as palavras decompostas    livres     propulsoras
lubrificadoras de ossos     vorazes
no ritmo largo das muralhas vencidas.
 
No tempo permanente
o exercício do extremo limite
amplifica os ângulos
destrói as máquinas antigas
propôs a celeridade como estilo
no regresso possível à pureza dos nomes
 
Deixa correr célere a pena sobre o papel branco e gelado
semeado de gotículas azuis que são as palavras
umas a seguir às outra velozmente
quase nem refreadas
As palavras e o azulado das gotículas tomam a cor de um céu
                                                                                            [molhado
angustioso como o punho que dói ao escrever
Deixa que célere voe o pensamento
porque irás indubitavelmente infantil
encontrar o teu modo inevitável de dizer as coisas
IMPORTANTE
Somos as águias falsas sobre o oriente
ligado por fios eléctricos a cinco minutos que nunca mais passam
– já teriam passado –
O papel agora é mais branco
a vida poderia ter sido verdadeiramente amada e retribuir
porém os erros tornaram-me conveniente e apto
mais apto
para o ofício egoísta de escrever palavras azuis
gotículas sobre o papel de neve
 
 
(A Estrela Rutilante)
 
 
 
manuel de castro
o surrealismo na poesia portuguesa
organização, prefácio e notas de natália correia
frenesi
2002






11 outubro 2019

manuel de castro / poema




A noite líquida     oclusa     vegetal
é um corpo longilíneo e desmembrado
flui como um rio de si mesmo alheio
flui e envolve pressagiando cárceres
a noite tem hoje uma altitude especial
com aves negrejando lentamente
neste desintegrar-se da memória

e eu sou uma alucinação rítmica
com um tempo corpóreo a devorar
um mar excessivamente quieto na cabeça
excessivamente muscular e lúcido

a noite distribui pedaços de lua
aos farrapos     na inconsciência dos prédios
sobre a cidade     a cidade     a cidade louca
que desvairou nas minhas mãos     nos dedos
possuída de um candelabro antigo a partir-se
um lampadário cristalino e rutilante
a quebrar-se com súbitos estilhaços pela noite fora

viajo nitidamente pelo passado
na organização de um jogo de perigo:

o meu amor é a aquisição de uma técnica
um processo de transformação dos corpos
a prospecção dramática dos ritos
uma queda livre e vertical
um olhar imóvel sobre o mar
a oferta do tempo     sem comércio nem ódio
fibra a fibra
do tempo crivado de buracos     baleado
assassinado     corrupto     perdido

o meu amor é correcta magia dos sons
a ultrapassagem da noite
fulminante e arrebatada     num círculo de fogo
coberta de engenhos de destruição
correndo extensamente sem peso

o meu amor é uma trovoada nas margens da noite
uma proposta veiculada a sangue
patrocinada pelos mortos deambulantes
e é ainda a carcaça húmida dos barcos
destroçados n’areia

a noite é um coral magnífico na noite



manuel de castro
surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de vasconcelos
edições salamandra
1992






29 julho 2019

manuel de castro / paralelo w




Largos largos largos LARGOS HORIZONTES         
– não te recordarei. Há um país fatal,
existe uma zona de aventura, um segredo

O amor possui o tempo – Ignora
que já não há velas nem os capitães
são agora donos de seus barcos.
Tudo nos transporta participa
do nosso imparável movimento.

Ignora

que os ancoradouros são para os navios
mas os navios partem
e por vezes não regressam

Todos os meus amigos são rosas brancas
todo o meu amor é ave lenta

No entanto

prefiro-me veneziano rápido
oferecendo anéis aos mendigos
vestir-me de rubro e negro para ti
ao som dos clarins
fluir viagem de flores súplice de perigo

os navios partem
por vezes não regressam e todavia
eis O SUL – uma palavra, um gesto
um lugar, um anel
– rápido som de clarim
Viagem de Flores
Perigo

este é o tempo em que morrem os Príncipes
ao sol posto num final sereno
e se iniciam os ritos bárbaros
da Grande Velocidade
manchas no céu da noite
quebram e reúnem seus corpos
em cósmicos espelhos
enquanto um mágico aceno de fluor
descreve a partida das nossas frotas
na imensidão azul escura
cristalizando no oculto um sentido
para a vida e a morte
concretizando o movimento dos nossos músculos
– um brilho que cheira a limo e sal.

Sobre os cadáveres assim incorruptíveis
dos velhos príncipes desagregados no mar
passam os navios
e a geração angélica e terrível
talha o seu destino sobre-humano
onde a noite vais expulsar os astros
iniciar-se, e ter um nome diferente.



manuel de castro
paralelo w
1958






03 julho 2017

manuel de castro / último poema possivelmente de amor




recorda
como se os dias não fluíssem em dias
e para ti fosse um nítido jogo de músculos
meu braço no teu corpo      anfiteatro
da mais pura derrota rumo às constelações

eis-me descoberta
de tudo que se arrisca sem limite
construído pela colaboração de globos de vidro
iluminados e submersos
para o teu nome
um novo mecanismo de linguagem
para o teu corpo
memória      ciclo perfeito
dos meus desejos de pedra e de violência

tu
única para quem fui     adeus     o homem sem comédia


manuel de castro
o surrealismo na poesia portuguesa
organização, prefácio e notas de natália correia
frenesi
2002








26 março 2015

manuel de castro / poema para uma fada do desencanto



mão marfilínea deslizando vagarosa
num gesto perfumado e secular
sincrónico com a voz múrmura
dolente cadenciada distante
leve agitar de palmeiras
em ilhas incógnitas e felizes
  
gesto perfumado vagaroso
indica oceanos percorre continentes
aldeias furtivas de exóticos países
veios d'água subtis porém apenas
no dúbio mapa de navegação

no tempo das gravuras gentis
no tempo dos luares
dos instrumentos musicais longínquos
um leopardo atravessou a cidade
nocturna
silenciosa
onde estátuas assombradas
reflectiam a luz mortal dos astros

indecisos rumores corrosivos
transportaram para o mundo da fácil realidade
a tristeza
a alegria
e a cidade

atravessada por um ágil leopardo
possui a temperatura móbil da beleza
agora inerme
bela e fria
agora lancinante e desesperada
como recordação do que soubemos não ter sido
mas guardamos no coração

 desejo exacto
a distância as coisas e os dias
lançaram-me de mim
à rigidez impávida dos mortos
meu gesto e teu calor e teu olhar

o sol contém a noite a lua e dia
e não procuro amor que agrado seja
mas sombra no teu corpo intocável
sombra esbatimento e a lembrança
que viverei que sofrerei perfeita
do percorrer monótono do tempo
da invenção oferecida apenas a si própria
do semblante variável do sentido
das pedras que muralha se constroem
minha indiferença meu amor distância
areia e mar dormindo sob a lua


                                            (Paralelo W)



manuel de castro
o surrealismo na poesia portuguesa
organização, prefácio e notas de natália correia
frenesi
2002





20 junho 2014

manuel de castro / tenho como certo que isto não resiste



Tenho como certo que isto não resiste
que eu próprio hei-de quebrar o berço aos pedaços
o berço delicado onde matei um jovem
a fim de o ver sereno listrado de luar.
Não olho para o sol. Sei que existe

pela luz quente aberta nos telhados
vermelhos onde o musgo é mágica subtil.
Sentir é uma febre de cansaços.
Sentir vai como febre nos nervos, sincopada,
onde se sabe que o corpo está presente

porque atirei o que visto para uma estrada
estando eu ali dentro casualmente
exactamente como o esforço fútil
de ver um pôr-de-sol e concordar.

E agora ─ nada mais que traços
em papel de seda, verde-claro, frágil…
nada mais que um pequeno segredo,
torres, e a nuvem que eu vou para existir
tão plenamente, um risco no lajedo…

Amanhã
serei bom
por música



manuel de castro
paralelo w
1958





22 março 2010

manuel de castro / poema







para lá da cortina além da porta errada
silencioso e só está sentado
e lê num livro velho
a sua própria história








manuel de castro
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985










11 julho 2007

a erc josamu jove







Nós os intocáveis, os imundos, recusamos
nossa vida à condição comum.
Porque é intemporal a rosa que nos leva
entre o dia e a noite.
Nós os derrotados, impuros, oferecemos
nossa miséria a um significado
oculto e diferente –

asa branca na varanda
nome escrito nos telhados
estrada atravessando a terra de ninguém


Nós os últimos dos últimos coroamos
impérios e jardins










manuel de castro

surrealismo abjeccionismo
antologia selecionada por
mário cesariny de Vasconcelos
edições salamandra
1992